Emmanuel Mounier (1905-1950) e sua filha Anne

Espaço para difusão da filosofia personalista de Emmanuel Mounier e para ponderações de vários temas importantes, tendo como referência essa perspectiva filosófica.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Significado da dúvida cartesiana.

Significado da dúvida cartesiana.

Jean Lacroix*

Uma Filosofia do sujeito não pode deixar de ser uma filosofia da liberdade: se é preciso remontar à dúvida cartesiana como origem necessária de todo personalismo é porque nela se encontra a mais profunda experiência da liberdade e o próprio descobrimento da pessoa. Eu sou livre se não sou coagido pelo objeto, isto é, se tenho diante dele a capacidade de interdizer meu julgamento: eu domino o mundo se tenho a capacidade de negá-lo, ou, como diria Sartre, de torná-lo em nada (Le néantir). Ora, este é, antes de qualquer outro, o significado da dúvida cartesiana: ela surge antes de tudo como uma decisão heróica da vontade de elevar-se do mundo corporal ao mundo espiritual e atingir a plena espiritualidade do espírito.

I. A DÚVIDA, HEROISMO DO QUERER

A dúvida, como já foi acertadamente assinalada por Liard, é, de fato, obra da vontade. É um exercício tenso de caráter bastante particular, especialmente moral, que lembra o método de desprendimento do Fédon. Este caráter moral se patenteia quando se atenta para as circunstâncias que o acompanham. Descartes escolhe (note-se bem: ele escolhe) para duvidar um momento em que não está distraído com nenhuma conversação, em que não está perturbado por qualquer cuidado ou paixão e em que pode permanecer o dia todo entretendo-se em seu mergulho nas ideias. E tal é a sua a sua importância destas três condições do Discurso que elas são reencontradas, de maneira idêntica nas Meditações. Mais ainda, toda a primeira meditação mostra como esta dúvida é antinatural, penosa e laboriosa. É preciso antes de mais nada querer duvidar e portanto “precaver-se contra uma certa lassidão que nos arrasta insensivelmente no curso ordinário da vida”. Essertier pôde escrever corretamente que o horror à dúvida é natural no homem. É por isso que para duvidar - e, sobretudo para continuar a duvidar – é necessário uma espécie de golpe de estado da vontade, de parti pris fundamental que busque manter-se por todos os meios e apesar de todas as tentações. Descartes não duvida pelas mesmas razões que os céticos, mas retoma as razões do céticos - e lhes acrescenta outrasporque ele quer duvidar. Por isso se pode dizer que a dúvida cartesiana, que nisso se assemelha à dúvida acadêmica, supunha a concepção voluntarista do assentimento. Para Spinoza, aquele que tem uma dúvida verdadeira sabe que ela o é e não pode duvidar dela. A vontade não pode, pois, interdizer o assentimento: não temos liberdade de dar ou recusar o assentimento a uma idéia verdadeira. Volutas et intellectus idem sunt (1). Descartes, pelo contrário, repudia, no momento da dúvida, ideias que ele posteriormente reconhecerá como verdadeiras: é preciso, pois, que nele a vontade esteja diferenciada do entendimento, que ele decida não dar seu assentimento. Desde o primeiro momento, a dúvida cartesiana surge como a decisão, como o compromisso de um homem resoluto: ela representa o reverso de uma crença essencial, que é a crença na liberdade, isto é, a confiança em si. Enquanto que a dívida pirroniana é indecisão e irresolução, a dúvida de Descartes é decisão e resolução.

Mas por que quer ele então duvidar? Porque ele ama a certeza. A resolução cartesiana talvez tenha consistido essencialmente nesta decisão heróica da vontade: a de não ceder senão à evidência. Para Aristóteles, se já é inconveniente contentar-se com a verossimilhança em ciências que comportam a certeza, é ainda menos possível exigir a certeza em ciências que não atingem senão o verossímil. Descartes, pelo contrário, concebendo apenas um tipo de certeza, construído segundo a matemática, obriga-se a duvidar enquanto não estiver absolutamente certo. Entre o duvidoso e o certo não há meio termo: a verossimilhança se confunde com a dúvida. A certeza ou é total ou não é certeza. A dúvida se apresenta assim como a decisão inabalável de interditar o juízo, a não ser diante da evidência. É o meio mais seguro, o único realmente seguro, de realizar a decisão que tomei de não me submeter senão à evidência. E não se diga que esta liberdade orgulhosa se deterá em meio do caminho, pois pelo menos a evidência me constrange (obriga). Pois a evidência ainda depende de mim, porque depende da direção de minha atenção, que é, juntamente com a dúvida, a prova suprema do livre-arbítrio: para não ser constrangida pela evidência eu não preciso mais que desviar meu espírito o que está a cada momento em meu poder.

Não se deduza daí, de maneira alguma, que a dúvida cartesiana seja arbitrária ou artificial. Não se trata de desembaraçar-se dela o mais rápido possível, mas, pelo contrário, por mais desagrado que se tenha em remoer uma matéria já tão comum, trata-se de aprofundá-la – e, sobretudo, conservá-la. A maior parte dos comentaristas consideram a dúvida como um momento da dialética, como um ponto de partida que não se leva mais em consideração a partir do momento em que se atinge a primeira evidência. Mas de fato, ela é o motor sempre presente de todo o pensamento cartesiano. A cada passo, a dúvida deve ressuscitar e subsistir enquanto não se tiver certeza. O objetivo não é nunca o de abalar o verdadeiro, mas sempre o de experimentá-lo e pô-lo à prova. A dúvida é sempre possível porque a ideia não se afirma jamais em nós sem nós, porque o assentimento depende sempre de nosso querer, porque nossa atenção é livre: a possibilidade da dúvida é a afirmação virtual da primazia do sujeito. Por ela se deduz o quanto a dúvida é uma determinação heróica do querer. Compreende-se aqui porque Hegel denominou Descartes de herói e porque Péguy o tenha descrito como este cavaleiro francês que partiu a tão bom passo.

Se este heroísmo da vontade se manifesta em todos os graus do pensamento cartesiano, em nenhum outro lugar tem ele tanta significação quanto na hipótese – quase escrevíamos no episódio – do gênio mau. Descartes é o cavaleiro que encontra o gênio mau e lhe fala calmamente, face a face, de igual para igual, seguro de, por meio da dúvida, poder escapa às suas artimanhas. O grande enganador pode impedir-nos de atingir a verdade, mas ele não poderia induzir-nos ao erro, pois como está dito nos Princípios, nós temos um livre-arbítrio que faz com que passamos a abster-nos das coisas enganosas, impedindo-nos assim de sermos enganados”. É, portanto, em minha capacidade de recusa e de não adesão, em meu poder de negação, em minha negatividade, como teria dito Hegel, nesta potência em escapar a todas as vertigens, que Renovier chamava de “nolonté”(2), que se manifesta antes de tudo minha liberdade: ser livre é ser capaz de dizer não. A dúvida representa o exercício mesmo do livre arbítrio e sua prova primeira e fundamental, pois permite romper o contato e tomar posição. Antes da dúvida, eu estou como se não existisse, vivendo confusamente em um mundo de aparências, prevenido pela vida do corpo ou da sociedade, movido por uma espécie de opinião, de origem sensorial ou social, que não depende de mim e que de maneira alguma me expressa. A credulidade é primitiva; ela em si, não exprime mais do que minha vida corporal ou social, nunca minha vida espiritual. E é justamente ao tomar consciência de si, em sua resistência em relação ao dado sensível ou a pressão coletiva, graças a ascese da dúvida, que o espírito se concebe como pessoa, como um EU. A partir de Descartes o personalismo passa a existir, isto é, passa a existir a filosofia que sabe que há uma subjetividade inalienável, que se unifica com a liberdade e se expressa, antes de mais nada, por este poder de recusa ou de distanciamento que se denomina a dúvida e que é a condição de todo o conhecimento de toda a ação verdadeiramente humana. Em face do gênio maligno eu experimento, pois, minha liberdade pelo próprio exercício da dúvida; ninguém pode me obrigar a afirmar sem estar de posse de uma certeza, uma vez que eu tenha decidido suspender meu juízo até atingir a evidência – evidência essa que somente se imporá a mim na medida em que eu dirigir minha livre atenção para ela. Minha vontade saberá resistir a todas as artimanha do grande enganador, inabalavelmente, pois tem em si a capacidade de duvidar. Tais são, ao mesmo tempo, as bases da audácia e da firmeza de Descartes, este cavaleiro solitário que partiu um dia para conquistar o mundo.

II. A DIALÉTICA DA DÚVIDA

Para sustentar uma decisão tão firme, mas também tão difícil, é preciso fundamentá-la na razão. Enganar-se-ia redondamente aquele que supusesse, pelo que se disse acima, que os motivos da dúvida não tem maior importância ou interesse. Pelo contrário, são apenas eles que vão fazer-nos compreender melhor a dialética cartesiana, determinando-lhe a direção. Importa, pois, enormemente, a retomada, ainda uma vez, desta célebre análise, relembrando sumariamente as razões da dúvida cartesiana. Cada razão tem um significado, que concorre para se deduzir o sentido do conjunto: a dúvida cartesiana tem por fim desligar-nos de todo dogmatismo. É, de fato, o dogmatismo que Descartes encontra em primeiro lugar em seu caminho e por dogmatismo deve-se compreender uma adesão imediata e espontânea ao conteúdo da representação. O dogmatismo se apresenta além disso sob duas formas: comum e científica. É este duplo dogmatismo que Descartes vai exorcizar.

O dogmatismo do senso comum consiste antes de mais nada em, de algum modo, tomar posse imediata do conteúdo do conhecimento sensível: é a adesão ingênua e irrefletida do sujeito ao objeto, a confusão do sujeito com o objeto. É, em suma, a credulidade, isto é, a crença enquanto anterior a dúvida e que dela nem toma conhecimento. Toda a imagem de objeto determina quase que infalivelmente uma crença na existência do objeto tal como é percebido; este é o dogmatismo do senso comum. É idêntico ao que Renovier denominará de vertigem mental, e que consiste na predominância da vida espontânea sobre a vida reflexiva. Descartes denuncia este dogmatismo por meio de dois argumentos: mostra inicialmente que os sentidos às vezes nos enganam, que há ilusões dos sentidos. Esta simples observação tem por objetivo fazer-nos duvidar da exatidão de nossas percepções. Talvez as coisas não correspondam exatamente às minhas sensações, já que eu posso me enganar ao percebê-las. Vem a seguir o argumento do sonho, que vai mais longe. Demonstra ele que, além de as coisas não serem necessariamente como eu as concebo, talvez elas nem mesmo existam em absoluto. Poderia acontecer que o plano da realidade fosse por completo uma ilusão. Podemos estar lidando com realidades que são vistas, tocadas, sentidas que elas existam. Consequentemente, é a existência do próprio mundo exterior que é aqui posta em dúvida.

Os argumentos precedentes são levados contra o sensível, mas não contra o inteligível, abalam o dogmatismo do senso comum, mas não o que se poderia chamar d dogmatismo científico. Podemos, na realidade, decompor o universo em elementos de inteligibilidade que não precisam existir. Parece lógico pois que a dúvida não possa atingi-los. Se eu posso, em rigor, duvidar do que tem por raiz a experiência, como no entanto poderia eu pôr em dúvidas as verdades matemáticas? “Pois esteja eu acordado ou adormecido dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado não será nunca mais de quatro lados; e não me parece possível que verdades tão claras e tão evidentes possam ser suspeitadas de alguma falsidade ou incerteza” (Primeira Meditação). Porém contra essa segunda forma, mais elevada, de dogmatismo, Descartes faz também valer duas razões, a primeira encontrada no Discurso, não nas Meditações, a segunda nas Meditações, mas não no Discurso, ao passo que os Princípios reúnem ambas, insistindo mais sobre a segunda.

“Primeiro, há erros de raciocínio, como há erros dos sentidos. Se estes me obrigam colocar em dúvida toda a percepção, aqueles devem obrigar-me a colocar em dúvida a ciência”. “E, como há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo em assuntos mais simples da geometria, com eles construindo paralogismos, considerando que estou sujeito a fracassar, com qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões que eu anteriormente havia tomado como demonstrações” (Discurso – IVª parte). O segundo argumento é a famosa hipótese do gênio mau de que falamos há pouco. Qual é o seu significado? Para Hamelin, é a suposição da irracionalidade essencial da natureza, de uma espécie de violência que o mundo faria à inteligência. É uma explicação interessante para que se compreenda a filosofia de Hamelin, mas não a de Descartes. Na verdade a hipótese do gênio mau é antes uma espécie de golpe de Estado da vontade, que, para levar a dúvida ao extremo, se acautela supondo a existência de uma vontade superior no mundo acima da natureza e cujo maior prazer reside em poder me enganar: é a hipótese de uma vontade radicalmente má, isto é, do pessimismo integral. Mas, para o objetivo a que visamos, basta fazer notar aqui que se a dúvida aqui tem lugar é porque há dois momentos no raciocínio. Dois e três somados fazem cinco, mas entre dois e três de um lado e cinco do outro há uma separação que deixa em aberto a intervenção do gênio mau. Há uma parcela de tempo introduzida no próprio âmago do juízo e é isto que se permite a dúvida. A dúvida só será esmagada se eu descobrir um juízo de pura interioridade em que o tempo não intervenha.

Estes vários argumentos nos levam a conceber a dúvida como um esforço para desligar o juízo de seu conteúdo. É um exercício voluntário que tem por objetivo a própria operação do juízo. Ora, o conteúdo do juízo é o que, na maioria das vezes, nos é fornecido pelos sentidos – o que é tanto mais certo por termos sido crianças antes de sermos homens, isto é, por termos pensado em função das necessidades do corpo, o que constitui a principal fonte da prevenção. É, pois, exatamente por estarmos mais particularmente ligados ao conhecimento sensível que precisamos desenvolver o esforço mais importante, mas também o mais doloroso, no sentido de separar o juízo de seu conteúdo sensível, material. Descartes diz ainda, no seu breviário, que ela dá precedência às razões por meio das quais se pode duvidar “especialmente das coisas materiais”. Mas, em última instância, a dívida é sempre e em qualquer lugar um esforço de adequação e interioridade. Duvidar é, em síntese, separar o juízo de seu conteúdo, o sujeito do objeto. Por meio da dúvida o sujeito se distingue pouco a pouco do objeto em vez de aderir a ele e com ele formar uma unidade. A dúvida se apresenta assim como a expressão mais profunda da liberdade do espírito: ela é, como já o conceituou Santo Agostinho, a própria liberdade. É preciso lembrar que a dúvida, ao estabelecer uma distância entre nós e o objeto de nossa crença, manifesta a primazia do sujeito. É na medida em que eu duvido que encontro o espiritual. A dúvida cartesiana é um método da descoberta do espírito.

III A ESPIRITUALIDADE DO ESPÍRITO

Do exposto se deduz a significação essencial da dúvida cartesiana. Ela é, na realidade, um método para nos levar da natureza material à natureza espiritual, ou de acordo com a terminologia platônica, do mundo sensível ao mundo inteligível; seu papel é abducere mentem a sensibus(3), para manter a expressão usada com tanta frequência nas Contas. E é esta razão profunda pela qual a dúvida é acima de tudo uma obra da vontade: é um exercício, uma ascese. Descartes se enquadra na grande tradição platônica e agostiniana. Em certo sentido a filosofia é de fato também para ele uma experiência de morte, compreendendo-se como tal um método que escapa ao corpo para descobrir o espírito. Seguindo uma via aberta por Gilson podem-se desdobrar aqui magníficas perspectivas históricas. Descartes se acha frente aos agostinianos na mesma posição de Santo Agostinho em relação aos platônicos, e Platão frente aos órficos. Ele lhes diz: “Vocês compreenderam, acertadamente, essência da filosofia, que consiste em elevar-se do sensível ao inteligível, do corporal ao espiritual. Apenas não encontraram um meio suficientemente intelectual, como o é a dúvida”. É uma única maneira de interpretar este significativo texto do início das Respostas às segundas objeções: “Ainda mais, por não termos tido até aqui ideia alguma de coisas que pertençam ao espírito sem que tenham vindo confundidas e misturadas com as idéias das coisas sensíveis e por ter sido esta a primeira e principal de não se ter entendido claramente nenhuma das coisas que foram ditas sobre Deus e a alma, eu julguei que não faria pouco se demonstrasse como se deve reconhecê-las, pois embora já tenha sido dito por muitos que para conceber de maneira exata as coisas imateriais ou metafísicas é necessário afastar o espírito dos sentidos, ninguém ao menos que eu saiba, já chegou a demonstrar qual meio se possa fazê-lo”. Texto capital, insuficientemente usado pelos comentaristas, e que estabelece claramente não só que o objetivo da filosofia é afastar o sentido dos espíritos, mas também que o único meio de consegui-lo é a dúvida. A atitude de Descartes aqui é a mesma que a de Platão no Fédon – mas a de um Platão que descobriu o verdadeiro método intelectual de se suicidar de algum modo, isto é, escapar a este túmulo que é o corpo e atingir o espírito. Compreende-se também que é uma ascese ao mesmo tempo intelectual e moral e que as razões para duvidar, separando o espírito dos sentidos, isto é, o juízo de seu conteúdo habitual, têm importância decisiva para o êxito total do esforço cartesiano?

A dúvida é, pois, de fato, um esforço pelo qual o espírito se aparta de todo o conteúdo, de tudo que não é ele próprio, e é levado isto a um extremo que o espírito chega a se apreender como puro pensamento: a dúvida, que não passa, em síntese, de uma vontade de receber a primeira evidência , a do Cogito, é o maior esforço jamais tentado no sentido de espiritualizar o espírito. Levar a dúvida a seus limites máximos representa chegar a compreender-se unicamente como ser pensante, ficar apartado inteiramente de toda impressão material para não apreender mais que a evidência única do pensamento. E é por isso, por ser a dúvida o próprio exercício do pensamento e o único exercício do pensamento apenas, desligado de todo o conteúdo, que é o único ato exclusivamente espiritual. A dúvida conduz à tomada de posse do espírito por si mesmo em seu próprio exercício. E o que é apreendido não é um espírito impessoal, mas o Eu. É na proporção em que eu duvido das aparências, em que me afasto do erro, em direção à verdade, em que faço um ato de sinceridade que eu tomo posição na existência. Anteriormente eu era para mim mesmo como se não existisse, vivia de maneira puramente automática, mo domínio das aparências, da vertigem: pois o que se chama vertigem é o fato de o objeto impor-se a mim sem mim, é a impossibilidade de duvidar, isto é, a negação do sujeito. Vertigem é afirmação imediata, dúvida, o poder de negatividade do espírito que sanciona uma afirmação mediata e refletida, isto é, pessoal. É, pois, na própria resistência à minha credulidade em relação ao dado sensível ou derivada da pressão social que eu tomo consciência de mim mesmo e me crio enquanto espírito pensante: a dúvida é a tomada de consciência da pessoa. O Cogito não é, pois, apenas um momento secundário da dialética cartesiana, não é posterior à dúvida e sim o espírito apreendendo a si próprio como espiritualidade pura pela ascese da dúvida. Consequentemente, nada mais contrário a dúvida que o decurso ordinário da vida, que não é mais que o ponto de vista da união da alma e do corpo, isto é, da confusão da natureza espiritual e da natureza material. Ora, é para esta confusão que todos os meus preconceitos e a própria vida me impelem. Surge daí a necessidade, para a vontade, de se precaver, precaver-se sempre e efetivar um último golpe de Estado, que consiste em iludir-me a mim mesmo, declarando falso o que for apenas duvidoso (o que Gassendi não soube compreender, dizendo ser isto substituir um preconceito por outro), a fim de escapar ao corpo para me refugiar no espírito. A dúvida é o único meio de atingir a natureza espiritual em toda a sua pureza. E Gassendi, pensando fazer zombaria dirigindo-se a um espírito puro (mens) não soube ver que exatamentea dúvida tem por objetivo, de fato, atingir o espírito puro e tornar-se puro espírito.

Talvez assim se compreenda melhor certas passagens obscuras e a interioridade, como ousaríamos chamá-la, do Cogito, ergo sum e do Cogito, ergo Deus est à dúvida. A dúvida é o único meio de conceber corretamente as coisas imateriais ou metafísicas. Segue-se daí que aquele que ainda não se exercitou suficientemente na dúvida é de todo incapaz de compreender qualquer coisa de metafísica – e em conseqüência, que também não poderia em absoluto compreender nada da natureza do sujeito pensante e do próprio Deus. Porque na dúvida mesma há uma afirmação inclusa, afirmação sem a qual a dúvida não poderia existir e que não se pode pôr em questão e da qual não é possível tentar libertar-se sem com este mesmo ato recolocá-la: a afirmação do pensamento. O que torna absoluto a evidência do Cogito é que ele enuncia uma afirmação que está incluída em toda afirmação como em toda a negação: a dúvida levada a um extremo supõe a afirmação de um pensamento em virtude do qual mesmo ela exige e quanto mais extremada se torna a dúvida mais profunda se torna também a afirmação deste pensamento. Todo o juízo, mesmo negativo, tem como fundamento uma afirmação pura, pois exprime sempre um Pensamento. A dúvida última seria uma tentativa de negação do pensamento; ma só se poder negar o pensamento por um ato de pensamento que o restabelece. O dubito somente é possível se a negação que ele encerra se apóia na afirmação que o Cogito por sua vez contém: o poder da negação, característica de nosso espírito finito, e que se experimenta na dúvida, é um meio necessário, mas não passa de um meio para elevar-se a uma afirmação superior. Negação e afirmação representam o diálogo contínuo, a própria dialético de um pensamento imperfeito em busca do pensamento perfeito: apreender-se duvidando é apreender-se como espírito finito ligado a um espírito infinito e só por ele existindo. Ao me descobrir, na dúvida, eu descubro a minha relação a Deus. O próprio Descartes retorna a todo o instante a ideia de que suas provas sobre a existência de Deus no Discurso de nada valem porque em uma obra escrita em língua vulgar, da qual quis que até as mulheres pudessem entender um pouco ele não ousou levar mais longe as razões dos céticos. E assim há estreita ligação entre a dúvida e as provas cartesianas da existência de Deus: “Pois não é possível conhecer a certeza ou a evidência das razões que atestam a existência de Deus segundo o meu processo se não tivermos distintamente na memória aquelas razões que nos fazem notar a incerteza de todos os conhecimentos que temos a respeito das coisas materiais” (Cartas A.T., I, pag. 560). Prossigamos. Há um liame estreito em ortodoxia cartesiana estrita, entre a dúvida e a própria compreensão, na medida em que ela nos é acessível, da natureza divina, embora aquele que tiver levado a ascese da dúvida bem adiante adquira por esse mesmo processo um conhecimento quase intuitivo de Deus. De fato, Deus é puro espírito, e, sendo a dúvida o esforço supremo de espiritualização do espírito, torna-se evidente que exercitar-se nela representa aproximar-se do próprio Deus. “Além disso, ao nos determos por alguém tempo nesta meditação (a primeira) adquirimos pouco a pouco um conhecimento bastante nítido e, assim ouso dizer, intuitivo, da natureza intelectual em geral, ideia que, sendo considerada sem limites, é a de Deus, e limitada, é a de um anjo ou de uma alma humana” (Cartas, A.T., I, pág. 353).

Da análise da dúvida, como da inquietação, concluímos em definitivo a primazia do sujeito: em sua essência, a dúvida – a indubitável dúvida, como diz Alain – é a condição básica de toda afirmação personalista. O existencialismo sartriano soube bem reconhecê-lo. E o próprio marxismo não poderia subsistir sem este assentimento pessoal e livre, que é como que a presença do sujeito naquilo que ele pensa. Se, como já mencionamos, o objetivo último do comunismo é libertação das pessoas, não se compreenderia que ele começasse por negar aquilo que ele próprio quer estabelecer. Há nos marxistas uma desconfiança em relação a toda interiorização que é facilmente explicável: a vida interior serve com freqüência de pretexto a toda sorte de traições e de violências e a característica da “alma sublime”, concentrada em sua individualidade, é a má fé, tanto mais daninha quanto mais inconsciente for. Mas do fato em que a vida espiritual possa se degradar em vida interior não se segue que seja necessário suprimi-la, do fato de que o sujeito possa encerrar-se em si mesmo para viver apenas de si e satisfazer-se com seu drama íntimo não se segue que seja preciso negá-lo. O Cogito é uma aquisição definitiva do homem; ninguém pode subtrair-se a ele sem se destruir. E é igualmente um paradoxo estranho que o marxismo, que se propõe construir uma em que não mais haja alienação, isto é, em que todos os homens sejam sujeitos uns para os outros, chegue muitas vezes a esquecer ou até recusar este mesmo Cogito, sem o qual todo o indivíduo não é mais que um objeto para si próprio e para outro. Convém aqui, ainda uma vez, evitar as falsas interpretações ou degradações perigosas.

É preciso lembrar que – Descartes o negligencia talvez um pouco – que se o Dubito é que dá lugar ao Cogito, o mundo é que, por sua vez, dá lugar ao Dubito, necessariamente. Aquele que repõe tudo em dúvida não pode afastar totalmente as coisas para encontrar-se só em face de si mesmo: o mundo subsiste em face a ele, pelo menos enquanto dando lugar à dúvida ou à suspensão do juízo. É a dúvida, diz Gaston Berger, que permite a afirmação do pensamento, mas é o mundo, problemático ou aparentemente simples, que permite o exercício da dúvida. Sem o mundo, ponto de aplicação de meu pensamento, eu não posso me descobrir como espírito.

A mesma observação é válida em relação a meu corpo. O Cogito nos revela que a essência do espírito é de se conhecer; ele é consciência de si. Mas se o espírito se conhece, não se dá o mesmo com a alma. O espírito se define pelo Eu penso: ele é pensamento puro. A alma pelo contrário, é o espírito enquanto ligado a um corpo. E é precisamente, por estar substancialmente ligada a um corpo que ela não pode ver a si mesma. Ou, mais exatamente, o Cogito propriamente humano não pode ter senão os caracteres da temporalidade humana: ele não é tanto uma possessão imediata, mais uma lenta e difícil conquista. Também o definimos como conhecimento em progressão de um sujeito que se afirma sempre e persiste afirmando-se porque jamais se possui imóvel. O tempo, esta espécie de anelo em busca do ser, impede a presença total da pessoa em si própria. Há nisto um mistério, que é o da condição humana, que Descartes sempre respeitou. Nele não há, como não o há em Malebranche, uma visão da alma por si própria. A alma se vê como espírito e isto é o Cogito. Pela ascese da dúvida, pela intelecção, a alma se separa do corpo e se apreende como espírito, isto é, enquanto pensamento puro. Mas a intelecção não é uma morte, embora separando-se inteiramente do corpo, a alma permanece substancialmente unida a ele. A questão se resume, pois, em saber se deve ser colocado no princípio do conhecimento de si apenas a visão clara do espírito por ele mesmo ou um reconhecimento de um não sei que obscuro, opaco, que permanece em parte ininteligível para nós e que é exatamente a união da alma e do corpo. “O modo pelo qual a alma se une ao corpo não pode ser compreendido pelo homem e, no entanto, é o próprio homem”, dizia Santo Agostinho. A essência do espírito é de fato o pensamento, mas este não é a essência do homem. Compreende-se, pois, porque depois do Cogito o conhecimento de si tenha desdobrado em duas vias totalmente diferentes: uma em que se aplica em descobrir as leis do espírito e que se chama análise reflexiva e outra que se esforça em perscrutar as raízes biológicas e sociológicas do pensamento, o entremear da alma e do corpo físico e social, e que encontra suas maiores expressões na psicanálise freudiana e na crítica marxista. Ora, estas duas vias não nos parecem opostas e sim complementares. O método reflexivo nos mostra que não existe nada de humano, quer no indivíduo quer na sociedade, sem um retorno a si mesmo para reassumir-se de algum modo e levar-se em conta: sem atenção e reflexão o homem está como que fora de si, não está presente no que pensa, não está presente no que faz, não está presente nem mesmo no que é. Mas esta análise reflexiva não esgota o homem; e na medida mesmo em que ele chegar a depurar-se para atingir as leis do espírito puro ela nos prova que dele estamos afastados. Ao descobrir nossa relação com a eternidade ela nos prova que não somos eternos. Marxismos e freudismos, por sua vez, esclarecem cada dia mais a condição humana; atestam que o espírito humano não é apenas estrutura, mas acontecimento, que nós somos história. Fazendo-nos reassumir a cada momento nossa situação biológica e social combatem a má fé e obrigando-nos a uma ação imediata e efetiva. Mas, quanto mais eles descobrem os substratos do pensamento e seus múltiplos condicionamentos, mais demonstram haver no pensamento autêntico uma transcendência que suas condições não conseguem explicar ou reduzir. O medo de nossos contemporâneos diante das explicações freudianas ou marxistas tem qualquer coisa de ridículo ou, mais propriamente, de pueril. Como se só pudesse salvaguardar o espírito desligando-o do homem. Esquecem que o autor das Meditações é também o autor das Paixões da Alma. Tudo aquilo que permitir uma melhor compreensão não pode, de maneira alguma, senão ser útil ao espírito. O Cogito, uma vez descoberto, não poderia jamais conduzir a uma ruminação mental sob pretexto de conservar-lhe a pureza. O Eu penso é transcendente a todo objeto; mas ele somente poder exercer-se e conhecer a si mesmo aplicando-se a um objeto. É preciso, pois, definir um tipo de conhecimento especificamente humano, que não seja nem pura subjetividade nem pura objetividade, mas uma interpenetração mútua do sujeito e do objeto em que o sujeito conserve incessantemente a consciência de sua supremacia. É exatamente o que se denomina crença.­______
Fonte: LACROIX, Jean. Marxismo Existencialismo Personalismo. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
(1) A vontade e a inteligência são a mesma coisa. Em latim no original. (N. do T.)

(2) Nolonté seria uma espécie de vontade negativa, por contraposição a volonté, vontade real. O termo foi mantido por não comportar a tradução a expressividade associativa do original. (N. do T.)

(3) “Desviar a mente dos sentidos”. Em latim no original. (N. do T.)

*Jean Lacroix foi um filósofo francês personalista; amigo de Emmanuel Mounier e colaborador da revista ESPRIT. Nasceu em Lyon em 23 de dezembro de 1900 e faleceu em 27 de julho de 1986.
Obras de Jean Lacroix em língua portuguesa: Kant e o kantismo. tradução de Maria Manuela Cardoso. Porto: Rés, 1979, 2001.
A sociologia de Augusto Comte /A ordem politica e social Augusto Comte. - Jean Lacroix- Gian Destefanis. Curitiba:Editora Vila do Príncipe, 2003.
Os homens diante do fracasso. - Jean Lacroix. Org. São Paulo: Editora Loyola, 1970.
Marxismo Existencialismo Personalismo. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
Timidez e Adolescência. São Paulo: Livrobras- comércio de livro.
O personalismo como anti-ideologia. Tradução de Olga Magalhães. Porto: Rés, 1977.
Foto: Jean Lacroix.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

REFLEXÃO SOBRE O SER COMUNITÁRIO

REFLEXÃO SOBRE O SER COMUNITÁRIO
Antonio Glauton Varela Rocha1 


A necessidade fundamental do compartilhar 

Em muitas discussões sobre a comunitariedade humana, surge como objeção a afirmação de que se faz uma confusão entre as ordens do dever-se e do ser. A confusão seria a de que por defendermos o valor da sociabilidade e da colaboração humanas colocamos estas dimensões como parte do ser do homem, quando na verdade o homem não é em si comunitário essencialmente, apesar de que deva buscar a colaboração.
Sem querer entrar na questão sobre a possibilidade do ser e do dever-ser serem separados, sigo o raciocínio iniciado pela objeção citada e faço agora a minha própria objeção: a comunitariedade não é da ordem do dever-ser, é da ordem do ser. Na realidade é o agir comunitário que podemos classificar como sendo da ordem do dever-ser (e não a comunitariedade em si), o que nos coloca defronte de uma característica própria do ser humano, ele é o único ser vivo que pode agir em desconformidade com a sua própria natureza – não digo agir sem a natureza, mas desafiar a própria natureza.
Efetivamente, para existir como pessoa o ser humano precisa compartilhar elementos básicos com os outros. Por mais que dois interlocutores discordem sobre um assunto debatido, eles precisam estar de acordo com o significado de uma série de simbologias que está por trás do sistema lingüístico em que eles travam o diálogo. Além disto, é preciso ter também em comum uma visão básica sobre a realidade, como a certeza mútua de que há diante de si um interlocutor. Normalmente compartilhamos uma visão de mundo que está por trás das nossas análises sobre o próprio mundo, e é esta mesma visão de mundo compartilhada que permite as discordâncias sobre as várias análises. Ou seja, independente do conteúdo compartilhado, compartilhar é sempre algo fundamental à existência humana, e com isso, a vida comunitária também deve ser compreendida como fundamental, pois nós não compartilhamos algo conosco mesmos, mas com um outro. No entanto, o ser humano pode se distanciar desta condição e usar a sua necessária comunitariedade para viver como se a vida comunitária não fosse completamente essencial. É a isto que me referia quando dizia que o homem pode desafiar sua natureza ou essência.
Em condições normais, nunca veremos um leão vegetariano, nem este mesmo leão acordando antes de satisfazer o sono completamente para se preparar melhor para a caça. Neste caso vemos as características próprias deste animal se imporem determinando as sua ações2 . O homem pode, no decorrer de sua vida, escolher (movido por princípios livremente escolhidos) não comer mais carne. Pode escolher dormir bem menos durante o dia para realizar tarefas que ele considera fundamentais, ou criar sistemas de organização sócio-econômicos que obriguem um espaço de tempo destinado ao sono bem limitado, mesmo que a sua necessidade de sono permaneça inalterada diante desta motivação. Isto é possível porque a consciência e a liberdade permitem ao homem driblar algumas de suas determinações naturais.
Se pensarmos numa espécie de abelha própria de vida em colméias e que foi retirada da sua colméia e por algum motivo não consegue mais retornar, ficando completamente isolada de outras abelhas; não teremos dificuldade em prever seu futuro próximo: a morte. Apesar de anatomicamente ela ainda ser capaz de produzir favos e mel ela não irá construir seu próprio ninho e seu próprio mel para passar o restante de seus dias. Isto acontece porque ela está presa a um aspecto fundamental de sua essência: a sociabilidade. Na natureza, em geral todo animal fundamentalmente social terá profunda dificuldade – ou mesmo completa impossibilidade – de sobreviver se não estiver em seu ambiente social próprio. Mas no caso do homem acontece diferente. Sua racionalidade e liberdade lhe permitem usufruir de seu contexto social usando-o a seu favor – muitas vezes sem dar uma contrapartida proporcional – e viver como se não se precisasse dos outros, imersos num individualismo pretensamente natural, mas que não passa de um individualismo parasitário.

Sobre o pretenso egoísmo natural do ser humano

Normalmente se fala que o “egoísmo” natural de qualquer criança nos seus primeiros meses e anos de vida seja uma prova cabal de que a verdadeira natureza humana é individualista. No entanto, é interessante constatar que a fase em que somos mais egoístas coincida com a fase em que somos mais dependentes dos outros. Uma fase em que se percebe muito claramente como a idéia de um indivíduo atomizado, isolado e independente é frágil e se fosse aplicada a este momento da vida humana (supostamente ícone do egoísmo e do individualismo natural do homem) implicaria sua morte inevitável.
No homem há uma conjugação de uma natureza individual e social, que podemos chamar de dimensões pessoal e comunitária. Uma não exclui a outra e na verdade só há humanidade plena na manifestação interdependente destas duas dimensões. A confusão sobre a relação ente estas dimensões acontece por uma característica da dimensão comunitária: ela não é tão evidente quanto à compreensão que o homem tem de sua própria singularidade.
Na realidade nem podemos falar de percepção da individualidade completamente e naturalmente evidente. Esta percepção é posterior à percepção do outro. Como dizia Mounier, é no espelho do outro que a criança se reconhece distinta deste outro de modo que a percepção do “eu” é ao menos simultânea ao surgimento do “nós”. Mas apesar de ser constituída posteriormente ao encontro, a singularidade tende naturalmente a se tornar cada vez mais consciente e mais vívida.
As percepções que apontam para a individualidade são mais numerosas, pois o que nós temos de mais próximos a nós somos nós mesmos, por isso, também, são percepções mais diretas: a fome que eu sinto é sempre primeiramente a minha fome, do mesmo modo se sucede com a dor, a sede, e assim por diante. Chegamos a ser capazes de entender estas situações nos outros porque antes já passamos por elas e agora temos a capacidade de nos ver na situação alheia, de tal modo, a situação do outro adquire sentido para nós e nós podemos reconhecer neles estas circunstâncias. Ou seja, o nosso entendimento sobre o outro é posterior e indireto (mediado pelo eu)3 . Mas aí é que mora perigo, pelo fato de serem experiências mais diretas e por isso mais numerosas, e também mais impactantes (especialmente quando se tornam conscientes), estas percepções da singularidade não são suficientes para provar que a natureza do homem é individualista. Se é verdade que, alcançado o nível da consciência, o nós é mediado pelo eu, originalmente, quando ainda não há consciência manifesta é o eu que é mediado pelo nós (levando em conta a formação da personalidade humana4). O problema é que ter consciência do nós é muito mais complexo do que ter consciência do eu, a singularidade é muito mais evidente do que a sociabilidade. Daí a aparente evidência do primado no eu sobre o nós quando estamos nos momentos iniciais de uma reflexão sobre a sociabilidade humana; às vezes parece tão evidente, que tomamos este início por fim.
No entanto, ainda que a percepção do eu seja mais evidente que a percepção do nós isto não é suficiente para determinar o grau de destaque que o indivíduo irá receber na diversas sociedades. O atual reinado do indivíduo é apenas uma manifestação histórica no meio de muitas outras ocorridas e possíveis. Uma determinada visão de mundo, que podemos chamar de horizonte, é que define os destinos da relação entre indivíduo e sociedade.
Durkheim faz uma distinção interessante a respeito da relação entre os indivíduos e a sociedade no desenrolar da história. Ele fala de dois tipos fundamentais de solidariedade: a mecânica e a orgânica 5. As duas geram organizações sociais bem distintas. A solidariedade mecânica tem como predomínio a semelhança. Os indivíduos não são diferenciados e se organizam a partir de costumes e valores comuns. Há como que uma consciência coletiva, que perpassa as consciências individuais, mas que tem uma espécie de vida própria. Já a solidariedade orgânica é posterior e é marcada pela diferenciação social. Destacam-se as diferenças entre os indivíduos e a unidade do grupo tem menos prioridade em relação às preferências individuais. Segundo Durkheim, ela nasce a partir da divisão social do trabalho.
A ênfase atual no individualismo não é, pois, mais que um fruto de uma visão de mundo que se sobrepôs a outra. O mesmo poderia ser dito se a ênfase atual fosse da colaboração mútua entre as pessoas. Segundo Durkheim, a necessidade de formar laços comunitários e de compartilhar valores comuns foi inicialmente predominante nas comunidades humanas. Só depois o processo de diferenciação aconteceu. Não é, em última instância esta ênfase que retrata a natureza humana, pois dependendo das circunstancias ela pode até ir contra a natureza humana (para mim é exatamente isto que hoje acontece). A questão aqui é mais profunda, é preciso pensar sobre o modo próprio do homem existir no mundo (é a isto que me referi ao falar no início do texto sobre a necessidade fundamental do compartilhar para se falar de uma vida plenamente humana), e como as dimensões da singularidade e da sociabilidade se manifestam neste existir.
O outro lado da moeda
Chegando a este ponto é preciso um esclarecimento a fim de evitar um engano que pode surgir de uma apreciação apressada sobre nossa fala até o momento. A exaltação que fiz da sociabilidade não é feita para negar o valor da singularidade humana. O que eu quis dizer é que a sociabilidade é uma condição fundamental da existência plenamente humana, mas a singularidade também o é. Como já acenei no presente artigo: “uma não exclui a outra e na verdade só há humanidade plena na manifestação interdependente destas duas dimensões”. Kierkegaard já destacava o valor do singular6 frente à tentativa de universalização do conceito. Esta valorização não pode ser esquecida, mas isto não precisa ser feito a partir da desvalorização da sociabilidade. O grande dilema sobre a conciliação do singular e do coletivo pode ser pensado a partir de outros termos. O contraponto da singularidade em questão seria a comunidade – e não a coletividade ou o público – onde o singular é reconhecido como tal, sob pena de não podermos falar de comunidade se assim não for.
O problema sobre a noção do singular é a referência que se está jogo quando se invoca este termo. Se antes o que se tinha em mente era a irrepetibilidade (a especificidade de cada ser humano), a partir da modernidade passou-se a ter em mente prioritariamente um ser independente e isolado7. Com tais referências, o singular ganha uma capa de insociabilidade que originalmente não possuía. Em nosso tempo convém despir o termo destes acréscimos para pensá-lo em consonância com a sociabilidade.
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(1) Mestre em filosofia, professor de Filosofia na Faculdade Católica Rainha do Sertão e Faculdade Católica do Cariri, no Estado de Ceará.
(2) A evolução biológica poderia ser compreendida como uma forma ir além deste determinismo, mas neste caso estamos muito mais diante de eventos frutos de um acaso (mutações) ou de uma ação da natureza sobre ela mesma (a seleção natural) do que de uma “escolha” particular que contraria as regras impostas. Além do mais, uma evolução se repassa às descendências e dura milhões de gerações para se efetivar ou se aperfeiçoar. No caso homem vemos este ato desafiador se concretizar várias vezes ou mesmo continuamente no espaço de uma vida em particular.
(3) Antes, quando não estávamos ainda no nível do entendimento, o eu era mediado pelo outro, agora, alcançado o nível da consciência, o caminho se inverte.
(4) A formação de uma consciência do nós é mediada pela formação do eu, mas a formação do eu é mediado pela experiência do nós.
(5) ARON, Raymond. Etapas do pensamento sociológico, p. 287.
(6)"Nos gêneros animais sempre vale o princípio de que 'o indivíduo é inferior ao gênero'. O gênero humano, em que cada indivíduo é criado â imagem de Deus, tem essa característica, de o singular ser superior ao gênero" (Diálogos, X2, A, -126).
(7) VINUESA, José Maria. El Concepto de Autopropiedad. Revista Acontecimiento, p. 16.

Imagem: Antonio Glauton Varela.

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quinta-feira, 21 de julho de 2011

Antropologia da hospitalidade, ou seja, o personalismo como sistema.

ANTROPOLOGIA DA HOSPITALIDADE, OU SEJA, O PERSONALISMO COMO SISTEMA 

Krzysztof Guzowski*

Documento apresentado na Terceira Conferência da Associação Espanhola de Personalismo:

"Fórum de filosofia personalista", Centro Universitario Villanueva. Madrid, 16-17 de Fevereiro de 2007.

Introdução.

A maioria dos personalismos, ou seja, dos conceitos antropológicos, mostram a pessoa de diferentes maneiras: desde uma idéia geral de homem, até percebê-lo como um método, tudo isto, dificulta hoje em dia para os personalistas chegarem a um acordo entre si, e o personalismo ainda é visto somente como uma parte de uma certa antropologia. Desejo mostrar nesta exposição que o personalismo não é somente uma parte da antropologia, mas, a antropologia par excellence, assim, quando dizemos: antropologia - devemos pensar ao mesmo tempo em: “o personalismo como um sistema que contém todo o mundo do homem, ou seja, a totalidade do homem como sujeito corpóreo-espiritual e todo o universo de suas relações, no qual ele como pessoa, revela suas propriedades cognitivas, criadoras e espirituais”. A pessoa sempre se hospeda no mundo do espírito e da ação, e hospeda o mundo em si mesma interiorizando cada relação e definindo-a ad extra. Esta experiência da pessoa. “de estar no mundo”, “em si mesma”, “em outros”, e “fora de seu mundo”, determina o ser humano como hospitaleiro, aberto, dinâmico e transcendente. Da necessidade interior (subjetividade) e das condições ontológicas (a estrutura, ou seja, o equipamento da pessoa), a pessoa estabelece o contato com o mundo e constantemente tende a transcender suas próprias limitações. Por isso, para construir uma adequada ontologia da pessoa, deve-se construir primeiro uma adequada metafísica do personalismo, a qual nos permita ver o ser na perspectiva da pessoa e sua ontológica hospitalidade no mundo. Do contrário, todo o mundo ficaria como uma massa anônima, “um oceano de mônadas”.

Graças a capacidade da pessoa, no mundo acontece constantemente uma compenetração (perijoresis) não somente de diferentes formas de existir. A pessoa dirige o seu conhecimento, sua síntese, torna a linguagem real, a expressa colocando nome no que sucede nela, fora dela e por cima dela (a autoconsciência, a experiência, o conhecimento concreto e objetivo, o conhecimento transcendente, a intuição). A pessoa humana, graças a sua construção, é tanto imanente e transcendente em relação à realidade. Assim a pessoa humana está em relação com o mundo de outras pessoas, o mundo das coisas e o mundo do Absoluto (que não é nem o mundo dos homens, nem o mundo dos seres criados). De todo o dito anterior, proponho minha hipótese da “antropologia da hospitalidade”. A hospitalidade é a experiência primitiva e universal de todas as culturas, portanto substituiremos os termos: relação, diálogo, transcendência.

A evolução da abordagem da pessoa desde a singularidade até a relacionalidade.

O pensamento europeu se concentrava, no passado, nas provas da separação da pessoa do “resto” da realidade, e tinha motivos suficientes. Se pretendia demonstrar que o homem é uma “totalidade” em contraposição as tendências panteístas e materialistas, das quais viam o homem unicamente como um exemplar de uma espécie, um fragmento da realidade “qualitativamente” igual ao resto da realidade.Naquela época, tratava-se de acentuar a excepcional dignidade do homem no mundo das criaturas. Essa compreensão da pessoa se arrasta até hoje nas diversas formas de individualismo. Na célebre definição de Boécio: persona est naturae rationalis individua substantia, o principal acento está posto sobre “a substância individual”, ou seja, sobre a separação da pessoa do mundo e do cosmos. Tem se dito muito acerca dessa definição, pois é importante que tenhamos em conta que naquele tempo ela ajudou a aprofundar, o que é esta “substância individual”, e ademais, direcionou a atenção para o mistério da existência pessoal. No início da Idade Média, se pôs de relevo a existência pessoal que foi definida com o termo “subsistentia”, o que significava dita existência em si, por si e para si. Portanto, a pessoa ia sendo defininda como a existência substancial, individual, particlar, única em sua espécie, incomunicável, irrepetível [existentia singularis, incommunicabilis, irrepetibilis; Richard de São Vítor, Santo Tomás de Aquino, Juan Duns Escoto]. Evidentemente não é verdade que a metafísica expressa somente à natureza geral do homem. Na mencionada definição de Boécio, a pessoa é um indivíduo único e não a espécie humana em geral.

O pensamento Humano, observando o fenômeno da pessoa, descobriu um novo elemento essencial ontológico, ou seja, a subjetividade, o “eu” autoconsciência, reflexão, profundidade subjetiva, psíquica. Este traço via: Santo Agostinho, os agostinianos e as tendências cristãs místicas. No campo da filosofia, tão somente no século XVII Cartesius (Descartes) viu no homem, “ego cogitnas”, o sujeito.

O pensamento humano maduro, após a fase de definição da pessoa em si mesma, chega ao tempo de perceber a pessoa enquanto uma relação. Para esta nova perspectiva foi importante a contribuição de Santo Agostinho, que definia cada pessoa da Santíssima Trindade através de uma relação, mais tarde São Tomás de Aquino aprofundou esta perspectiva. Para ele, a pessoa não é sómente subsistencia mas também a relação substancial. No contexto pessoal, entendemos a relação, não no sentido psicológico, como uma relação com os outros, "comunicação", mas no sentido ontológico. A pessoa é uma relação no sentido ativo, porque forma outras pessoas e as coisas, entrando com elas em relações "definitivas". Ao mesmo tempo, a pessoa se relaciona no sentido passivo, ou seja, é o resultado de estar em relação com outras pessoas e coisas. Pode-se dizer que justamente por isso a pessoa é uma estrutura fundamental da realidade social e cósmica, porque é "relação-consciente, racional, e chega a conhecer” no mundo. A pessoa por isso, não é algo estático, senão justamente como a relação substancial - ela se faz a si mesma através do mundo de outras pessoas, onde se eleva às dimensões mais altas da sua existência e consciência. A relação com o mundo das coisas é secundário, porém podem ser criativas, especialmente como resultado do encantamento da beleza do universo.

No tratamento da pessoa, como “eu substancial” e como “a relação substancial” está presente implicite a indissolúvel relação com o mundo. Na primeira definição o elemento “cósmico” está presente na mais ampla compreensão da existência. A pessoa é existência separada, particular e autônoma, porém, participa da existência comum (esse commune) dos homens e das coisas. É uma existência separada do mundo, graças ao mundo e através do mundo. Aqui se deve recordar a escatológica dimensão da pessoa, uma certa extensão temporal e espacial, porque a existência pessoal sucede em relação às circunstancias, lugares e tempo. O homem através do corpo está imerso na corrente da vida, e conscientemente participa dela.

Na segunda definição como a substância–relação, se é pessoa graças à relação ontológica com outras pessoas, no contexto do mundo e as indústrias humanas, como a cultura e a técnica. A pessoa vive graças a relação com outras pessoas, o que ao mesmo tempo significa “a hospedagem” dos outros em sim mesma, sua aceitação, a abertura a todo o mundo pessoal deles. Assim na comunidade de pessoas se pode afirmar se pode afirmar a gênese da pessoa, porque o intercambio e a relação mútua entre as pessoas significam uma abertura a vida de outras pessoas com a qual estamos em relação. Porém, tudo o que está fora da realidade pessoal, o mundo não pessoal, constitue o contexto para a pessoalidade.

Como consequência, a pessoa deve definir-se integralmente como “subsitência subjetiva e a relação no seio de seu ser. O personalismo não é solipsismo. A pessoa real, não meramente mental, se realiza na relação com outros seres pessoais, com Deus e com as pessoas criadas, individuais e coletivas, e na relação a totalidadedo ser: a terra, o mundo, a realidade celestial.

A ontologia da hospitalidade.

Haveria que começar o tema da ontologia da hospitalidade desde a visão da relação de Santo Agostinho e Santo Tomás, eles superaram as categorias de Aristóteles favorecendo a doutrina das Pessoas na Santíssima Trindade. Eles criaram a base do conceito “da relação substancial”. A pessoa é a relação substancial, ou a substância que se relaciona. Para Aristóteles, o ser, no sentido próprio, é somente a substância, a relação de troca é a categoria mínima acidental. Na doutrina da Trindade sucede de alguma maneira uma identificação dialética entre a substância e a relação como base para a identidade da natureza. A pessoa se realiza, se faz a si mesma, se realiza tematicamente porque em essência é relação com outras pessoas, e com o mundo das coisas. A pessoa é, pois, substância e relação ao mesmo tempo. Parece que a ideia de pessoa exclui o individualismo e o coletivismo, porque a pessoa não existe sem outras pessoas e sem mundo material, nem tampouco a coletividade existe sem a subjetividade das pessoas.
A própria estrutura do corpo humano é relação com a natureza humana, com o mundo material e biológico. A pessoa se conhece a si mesma na relação consigo mesma, e o traço primordial da corporeidade da pessoa é a sexualidade. O corpo humano não é um conjunto de características anatômicas, sem a consciência co-social e o status escatológico. Através do corpo chega o comunicado ao nosso “eu” acerca de quem chegará a ser. Este comunicado, obriga o nosso “eu” a se orientado para a criatividade, para a criação da própria história. O “eu” humano, é, desde os primeiros momentos da existência, “despertado” e “incluído” nas relações para com as pessoas, e o próprio corpo (que no caso de sofrimento parece ser alheio), e para com o meio biológico. Não é assim que a pessoa está separada da realidade por um muro criado por sua própria consciência e corpo. O traço fundamental da pessoa é que ela é hospitaleira para com o “outro” e tem fome do novo que vem de fora de sua própria existência. O “outro” dá a vida e ao mesmo tempo está inscrito na estrutura da pessoa. É verdade que não há de ser um mundo de pessoas idênticas e é certo que o conteúdo da existência humana é “estar com outros” ou confrontar-se com “o outro”. Se não fosse pelo amor espiritual que conecta os mundos separados e é capaz de unir o que é diferente, o mundo humano seria um filme de terror e loucura. Talvez por isso, os que nunca sentiram o amor, experimentam sua existência como um fardo e uma perda.

Especialmente no campo do amor se aclara em certo modo uma dicotomia entre a existência individual, substancial e “fechada”, e a existência como relação. Karol Wojtyła define o amor como “o dom de si mesmo para a outra pessoa”. “Dar-se a si mesmo” significa abrir a porta do mistério de sua existência, confiar este mistério a outro, submergir-se no outro, em sua história pessoal. Dar-se a si mesmo é ao mesmo tempo a capacidade de receber o outro tal como é. Por isso, o amor significa tanto o dom, como a capacidade de recebê-lo. Dar-se aqui uma profunda dialética; de sair da própria substancialidade para o outro e para a realidade, e ao mesmo tempo, de regressar a si mesmo (reditio ad seipsum) juntamente com os outros e à realidade assimilada. É pessoa, em pleno sentido, graças à natureza humana, mais ainda, graças à esfera pessoal. Quer dizer, sem a livre vontade e sem a razão, não se poderia falar nem de amor e nem de relação.

A ideia da relação é compreendida demasiada objetiva e, genericamente, ao passo que a relação no mundo de pessoas, é a hospitalidade: é um sair de dois diferentes sujeitos ao encontro de si mesmo. A hospitalidade evolui e muda "as cores" dependendo do encontro com pessoas concretas. É por isso que também podemos falar da metafísica do personalismo e a causalidade pessoal (disso trataremos mais tarde). A primeira etapa da hospitalidade consiste em ocupar um espaço comum, na segunda etapa se dá a compreensão do “outro” o “diferente” e a aceitação dele em nosso próprio mundo, na terceira etapa da hospitalidade sucede a recepção do “outro” o “diferente” como um modelo para construir o próprio mundo e a ouvir atentamente “o outro” “o diferente”, na quarta etapa da hospitalidade, se equipara as diferenças e se constrói um mundo comum que na linguagem é denominado como “nós”.

A casualidade pessoal.

Como resultado, chegamos a um conceito de "pessoa social", embora isso supõe sair da filosofia clássica. É preciso construir o amplo e dinâmico do personalismo. Este personalismo não é só para entender que o homem é uma pessoa (antropologia do personalismol), o que compartilham quase todos os pensamentos, incluindo o marxismo, a fenomenologia, a hermenêutica filosófica, o liberalismo e outros, assim também todo o sistema intelectual, que interpreta e explica toda a realidade a partir da perspectiva da pessoa. Para o sistema de personalismo – da Escola de Lublin - o fenômeno da pessoa humana é o ponto de partida para a construção do personalismo, como tal, é o método ao mesmo tempo. Pois, sobre a base do personalismo e o que até agora tem sido dito, a hipótese de que a sociedade concreta, real, definida pelas fronteiras materiais e temporal-espacial, tem um caráter pessoal, é "pessoa", ou pelo menos quase-pessoa (K. Wojtyla). Ou seja, o caráter pessoal e ontológico, tem não só uma determinada pessoa, mas também a comunidade de pessoas (a sociedade).

Por conseguinte, cada sociedade tem sua "substância" sobre a base da natureza humana, o "eu" comum, o "nós". Tem sua comum: existência, destino (esse commune), atividade (etos), sua cultura. Aqui a dimensão natural e espiritual se juntam, embora a dimensão espiritual tem primazia e o caráter teleológico. Pode-se afirmar que a sociedade tem suas próprias estruturas e funções. Um saber comum: existência, consciência, vontade, sentimentos, trabalho e vida que, em alguns casos, é ao mesmo tempo real e biológico. "A pessoa social é a sociedade de pessoas, que é o produto de suas capacidades de correlação com base na natureza" (Bartnik).
A ontologia da hospitalidade se pode explicar de maneira gráfica através “da causalidade pessoal”. A sociedade não é somente um resultado da participação de muitas pessoas em um ambiente comum (Tomás de Aquino), e não é acidental referente ao ser (no campo da metafísica). O mistério desta grande “hospitalidade” que sucede em cada sociedade natural, é a “causalidade pessoal” que é fundamental para a existência do homem. No mundo de pessoas, como no próprio universo existem e atuam as causas. Entretanto a influência recíproca que se dá entre eles, leva um traço da pessoa e de sua grandeza. Percebemos que na existência pessoal, a sociedade está constantemente "presente", ainda que, com intensidade variada. Em cada sociedade participamos como um elo em uma grande cadeia. Quanto mais somos influenciados positivamente por pessoas-elo, enquanto elas nos atraem, tanto mais nós mesmos construímos a sociedade tanto mais "somos" sujeitos dela mesma. A sociedade "explora" os indivíduos, enquanto eles próprios participam plenamente no bem comum, ou seja, entregando as suas pessoalidades. Esta ligação pode ocorrer devido à participação não parcial, mas, completa da pessoa, donde se revela e realiza o homem em toda a verdade de sua existência. Esta sociedade não pode fundamentar-se apenas em ideais, mas também no bem comum. Por isso, sempre, o berço da sociedade estatal e de cada instituição são as comunidades naturais. Por exemplo, a família, onde se descobre a verdade da sua própria existência, que é a humanidade, afirmada no amor dos pais. Neste contexto, se vê mais claramente "a causa pessoal." O homem que experimenta o amor para preservar essa experiência de comunhão com os outros, é capaz de dar sua própria vida.

A transcendência e a hospitalidade.

A pessoa humana está submergida na realidade e ao mesmo tempo a transcende. Se a pessoa (individual) é capaz de transcender-se, então de alguma maneira a sociedade é capaz de transcender-se. Entendemos a sociedade como a soma de muitos sujeitos (indivíduos). Na sociedade a vida do sujeito (indivíduo) se defende de ser tratado de maneira instrumental. A pessoa é o ser mais perfeito, transcendental no que diz respeito ao mundo impessoal, por isso, para “encarnar-se” ou para poder assumir a existência biológica, seu “eu” (a consciência) tem que conceder aos valores materiais um valor absoluto. Talvez por isso, a grande qualidade da relação com outras pessoas, protege nossa existência da ilusão e do abandono da verdade sobre a essência da própria humanidade, a favor da mentira. Apesar de que, o homem se realiza somente no mundo das pessoas e dos valores “que servem a vida” (K. Popielski), os valores substitutos e temporais podem ter influência suficiente, caso haja falta qualidade nos valores espirituais substitui-se pela qualidade dos valores passageiros.

A transcendência supõe una determinada ontologia, segundo a qual a pessoa é um ser, (um ente), uma existência real e completa, e não somente uma ideia, um modelo, um conceito, um valor ou uma forma. Na civilização de hoje há certa tendência de regresso a um conceito reducionista do homem, segundo qual o homem é “um animal racional”. Hoje em dia se percebe também o homem somente como a razão, a mente o pensamento. Sucede também um tipo de reducionismo pitagórico, ou seja, o homem se percebe somente como um número, uma quantidade, um pensamento encarnado, uma parte da consciência na natureza e no melhor dos casos a palavra ou um fenômeno linguístico.

A informação adquire uma particular categoria “antropológica”. O homem teria que ser um receptor da informação, um efeito da informação ou um artífice dela (livre ou não livre). Teria que ser um ser (ente) que constrói sobre a base da informática e graças à ajuda das regras dela (por exemplo, J. Habermas). Neste caso teríamos que falar não somente sobre a sociedade da informação e da informática, senão também do homem “informativo” e “informático”. A sociedade teria que ser um conjunto da informação e digamos um ente informativo. Há que sublinhar, que desde Hegel, que em tempos modernos reduziu o homem a “logos” ou um “conceito”, é cada vez mais comum a prática da “in-formação” como um método básico e único de “formar” o homem como o individuo e como sociedade. Neste contexto se mostra o tema da natureza da informação. Acontece na prática com frequência, dominando a ideologia ou a propaganda muitas vezes sem alguma referência a verdade, a moralidade ou a outros valores mais altos. Se da uma imensa estreiteza mental, como se o homem como pessoa, individual e coletiva, seria quase totalmente um produto da informação, entendida como; o signo, o comunicado, a ideia, a frase, a teoria, a narração. Por essa razão o papel dos meios de comunicação é tão importante e por isso se observa uma continua batalha por ter seus próprios meios de comunicação.

A abordagem ontológica mostra a transcendência da pessoa em muitos níveis. A pessoa, mesmo esmagada por uma avalanche de informações, busca o verdadeiro relacionamentor, busca o mundo pessoal. Este desejo “de hospitalidade” está inscrito no ser da pessoa e se expressa em sua transcendência. Pretendemos mostrar, que hoje em dia, o mundo da comunicação, dos meios de comunicação, não cumprem esta função (salvo algumas exceções). É assim porque favorece a propaganda e não é capaz de ouvir. Para salvaguardar o mundo pessoal, é necessário que os meios de comunicação aprendam a ouvir e, consequentemente a falar. Isto não pode ter lugar unicamente no campo das investigações sociológicas como, por exemplo, sobre as tendências o da moda, etc. É necessário o regresso à verdade sobre o homem.

Aqui estão algumas observações:

a. Em primeiro lugar a pessoa é mais que uma pura informação, que o mero pensamento humano, que uma "sentença"” dirigida para a realidade objetiva; a pessoa vence todo o extremo agnosticismo e imanentismo cognoscitivo;
b. A pessoa ultrapassa os limites da existência material e biológica, preservando sua individualidade e independência ante as condições biológicas e sociológicas;
c. A pessoa humana é o centro da espiritualização do mundo. No homem o mundo alcança uma dimensão super-material (transcende o material), sobretudo a través da arte e da cultura. Na criatividade o homem imprime uma marca espiritual na matéria.
d. A transcendência no mundo pessoal não é somente para fora, mas também para dentro. A pessoa se adentra constantemente em seu mundo interior apartando-se do mundo dos fenômenos. Esta transcendência para dentro tende à mística e para o infinito.
e. Através da observação da beleza da natureza e da análise do passado, o homem transcende para a Pessoa Divina. Resumindo, a pessoa humana é a relação transcendental em todo seu ser.

Conclusão:

O personalismo não se limita somente a personología, ou seja, a ciência da existência da pessoa. O personalismo trata do ser em si mesmo no aspecto da relação em torno à pessoa. A pessoa como ponto de partida na interpretação do ser e da existência, não se limita só a seu marco, a sua “solidão”, como diria E. Lévinas, mas se refere também ao ser em geral. O personalismo no é solipsismo (Fichte), nem idealismo, nem reducionismo (as mônadas de Leibniz). Sobre todo “o ente comum” (ens commune) e a existência comum” (esse commune) constituem a base da realidade do ente pessoal (ens personale, esse personale) e a necessária co-relação da pessoa (ens relativum). O homem como pessoa poderia existir unicamente na co-relação com o ente comum e, não à parte dele.

O personalismo não começa com a definição da pessoa, mas com a vivência direta e com a experiência do fenômeno do mundo pessoal. A completa definição da pessoa é um ponto de chegada.

Há uma gradação na analogia do ser: Deus, a pessoa humana, a realidade impessoal. A existência pessoal é sempre um ser par excellence e um premodelo da realidade. A pessoa é a norma, a razão, a chave, o objetivo e o sentido de toda a realidade, e o final, o fim em si mesma (autoteleología). Isto não é um idealismo, porque tudo o que existe realmente e o que pode existir, faz referencia ao mundo da pessoa. Desta maneira se completa o chamado na cosmología “principio antrópico” segundo o qual todos os parâmetros do Universo estão configurados de tal maneira, para que possa existir a vida e os seres pessoais.

A realidade em geral tem uma estrutura pró-pessoal. A realidade tem uma relação interior com o próximo cognitivo (a verdade), com o desejo e aspiração (ao bem), com: o amor, a beleza, a auto-expressão, a liberdade, a autodeterminação, o valor e a criatividade. Tudo isto pode dar-se definitivamente na co-relação com a pessoa o com as pessoas. A pessoa é “o nome” do ser, o motivo de sua realidade e sua autenticidade.

Somente na pessoa e por ela o mundo pode conhecer-se a si mesmo. Por isso deve-se falar do personalismo sistemático o da antropologia da hospitalidade, para se dar conta que o mundo existe na relação com a pessoa humana e nela. Em sua estrutura subjetivo-objetiva o mundo encontra sua síntese e sua plenitude. O mundo da pessoa é um mundo hospitaleiro: nele diversas realidades não se contrapõem ou se destroem, mas recebem novas maneiras de existir.

Krzysztof Guzowski*
Professor emérito da Katolicki Uniwersytet Lubelski (Universidade Católica de Lublin)
Prof. Krzysztof Guzowski, nascido em 01/13 1962/ Zamosc. Sacerdote da Diocese de Zamosc-Lubaczów. 09/06 /1987. Ordenado sacerdote em Lublin das mãos do Papa João Paulo II. KUL pesquisador da 1998/10/01.

Em 1982 até 1984 esteve no Seminário de Przemysl, e depois da mudou para Lubaczów Seminário da Arquidiocese de Lublin, nos anos 1984-1987. Na Universidade Católica, alcançou o mestrado em Teologia Dogmática, em 1987.

Em 1988 até 1993 fez estudos especializados de teologia dogmática na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino", em Roma, em 1993, que culminou numa tese de doutorado em Ermeneutica. Anterioriormente (1990) Bacharelou-se na mesma Universidade no trabalho de Il Cammino di Gesù nel verso la croce "Mysterium Paschale" di Hans Urs von Balthasar. Depois de sua ordenação, além de estudos e trabalhos pastorais em Lubaczów e Zamosc, e de instrutor diocesano de religião e pastor professor e palestrante em College círculos criativos Catequéticos em Zamosc, Seminário Mariano de Lublin e na Universidade Popular em Sitnie. Foi assistente e - por sua vez - professor assistente do Pr. Prof Czeslaw Bartnik no Departamento de Teologia Histórica, e desde fevereiro de 2005 se tornou diretor do Departamento que foi fundado pelo personalismo cristão. Em junho de 2004, recebeu sua tese de pós-doutorado sobre o simbolismo do Fortego Trinity Bruno. Desde Abril de 2006, vem trabalhando como professor.

Até agora, publicou dois livros: um de doutorado e habilitação, quatro volumes de poesia e tem publicado como um editor científico de doze publicações no campo do personalismo, oito livros didáticos para a catequese e duas antologias de poesia. Ele é o editor e redator de uma série de sites personalistas . Exerce também o papel de editor-chefe do "Annals of Theology". Publicou mais de cinqüenta artigos científicos em polonês, italiano, eslovaco, espanhol e Inglês.

Sua direção de pesquisa é o personalismo. Desde 1997 ele é um colaborador regular da revista italiana personalista "Prospettiva Persona"; membro do Centro para o Estudo da Personalidade em Teramo, membro da Associação Internacional de personalismo com sede em Madrid. A luz da filosofia Personalista defende a construção de um novo método teológico, e um personalismo realista que interpreta a realidade integral da revelação, da graça, dos sacramentos (especialmente a Eucaristia), redenção e história da salvação. O Perfil do departamento de personalismo cristão é interdisciplinar.

No ano letivo 2008/2009, serviu como diretor do Instituto de Teologia Dogmática na Faculdade de Teologia de Lublin. Atualmente, é também vice-presidente da Sociedade de Teólogos dogmáticos. Ele é o criador de Pós-Graduação para Professores com ênfase no do pensamento de João Paulo II, em Lublin . Promove - simpósios e periódicos para divulgar o personalismo além do site http://www.polski-personalizm.pl/

Direção de pesquisa.

Pelo menos desde 1993, seus interesses de pesquisa (como evidenciado pelos títulos de publicações) se movem em quatro direções: o personalismo, a teologia, história e a filosofia da história -, questões teológicas da cultura e da arte, e a dimensão carismática do cristianismo. Em todas essas linhas de pesquisa, entretanto, é dominada pela perspectiva universalista do personalismo como uma visão holística da realidade e como um método. Com base no personalismo é possível criar uma síntese da visão filosófica e teológica do mundo temporal que não pode ser reduzido ou a um sistema de pensamento, ou tratado meramente como uma idéia dominante, porque o personalismo universalista é inerentemente intuição da realidade a "perspectiva da pessoa." Teologias cultivadas em perspectiva personalista demandas refinamento historiosófico e, portanto, a concretização histórica como o personalismo não pode ser identificada nem com uma compreensão idealista do ser, nem o individualismo nem o coletivismo; pessoa é uma relação, portanto, em termos, é mais adequado falar sobre o personalismo comunitário. Isto implica uma necessidade de diálogo entre teologia e outras disciplinas das ciências humanas. Todas essas tendências se reúnem no conceito universal do personalismo, que é o resultado da busca de diálogo entre teologia, filosofia e cultura contemporânea.

Tradução livre: Lailson Castanha

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Esse artigo foi traduzido a partir do texto em espanhol publicado no site Asociasión Españhola de Personalismo - personalismo.org http://www.personalismo.org/recursos/articulos/guzowski-krzysztof-antropologia-de-la-hospitalidad-es-decir-el-personalismo-como-sistema/




Imagem: Krzysztof Guzowski

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quarta-feira, 15 de junho de 2011

A revolução Personalista de Jean Lacroix.

A REVOLUÇÃO PERSONALISTA DE JEAN LACROIX

Carlos Gurméndez - El País. 22/07/1986

Algumas semanas atrás, em 27 de junho, morreu um dos grandes pensadores cristãos contemporâneos, Jean Lacroix, cujo nome está intimamente ligado ao núcleo da revista Esprit, uma publicação que exerceu grande influência sobre o pensamento humanista e religioso nas últimas décadas, incluindo o espanhol. A Filosofia de Jean Lacroix, ao mesmo tempo personalista e comunitária, é um dos enclaves de uma convulsão que para o cristianismo renovador atual, assumiu a penetração de uma filosofia social e uma ética marxista nas sociedades ocidentais.Desapareceu uma das grandes figuras do personalismo cristão. Era um homem poderoso, jovial, cheio de vigor e entusiasmo, aberto a todas as ideias, mesmo sendo elas opostas ao cristianismo essencial, como marxismo, a psicanálise, o estruturalismo. Possuia o dom de ouvir os pensamentos dos outros, dizendo que o mesmo era o Outro. Em uma de minhas viagens a Paris ele me apresentou Bergamin. Uma tarde, na redação da revista Esprit fiquei impressionado ao ouvir como Lacroix e Albert Beguin criticavam a política de Pio XII, eles tão fervorosamente católicos.

Cristianismo e o marxismo.

Muitos anos depois, voltei a encontrá-lo no instituto francês de Madrid, onde tivemos uma longa conversa sobre a relação entre cristianismo e marxismo, um de seus temas preferidos, deixando uma entrevista, publicada no El país (04 de novembro de 1977). Este grande pensador Francês nasceu em 23 de dezembro de 1900 em Lyon. Começou sua carreira universitária no ano de 1925, no Liceo de Chalon sur Saône. Leciona em Lons Saumier, Djon, e detem a cátedra de Filosofía no Instituto de Lyon em 15168. Com Emmanuel Mounier funda em1932 a revista Esprit, e desde 1945 até 1980 foi colunista filosófico do Le Monde. Entre suas obras importantes cabe destacar: Marxismo, existencialismo, Personalismo (1949); O sentido do ateísmo moderno (1956); O desejo e os desejos (1975), e Kant e o kantismo (1980).

Qual é a essência de seu pensamento e do personalismo, cristão? Parte de um conceito da pessoa como dádiva, entrega aos outros. Em oposição a Max Scheler, para quem a pessoa transcende a individualidade para uma afirmação hierárquica de valores espirituais do Eu, afirma Jean Lacroix que se é pessoa, pelo simples e natural fato de se abrir, de expor-se aos outros. A experiência real da pessoa pensa que é a do Outro, "meu ser é com", Mitsein o ser para os outros, e só nos fazemos pessoas convivendo com eles. Esta atitude é denominada "revolução personalista", pois cada ser é capaz de desprender-se de si mesmo, fazendo-se disponível aos outros. Para o personalismo cristão os atos de expropriação são a ascese da vida pessoal. Pois, como não é fácil renunciar a si mesmo, é necessário um exercício da vontade, uma práxis que libere o Eu de seus egoísmos, uma desencarnação da individualidade possessiva.

O personalismo continua a mais profunda tradição do cristianismo primitivo evangélico: luta contra o amor próprio, o egocentrismo, o narcisismo. Ao abandonar le moi haissable (eu odiava-o) se situa no ponto de vista do Outro, que não significa abdicação da realidade do Eu. Lacroix, em sua obra O sentido do realismo, explica que esta abertura total não implica deixar de ser, d'être moi (ser eu), pois existe uma forma de compreender tudo o que equivale a não amar a nada, não ser nada, dissolver-se no outro e não querer sua compreensão. Lacroix insiste em que a doação de si, em que radica a essência da pessoa, não significa suicídio nem generosidade gratuita. Este dom, de si mesmo constitui uma reafirmação da existência pessoal. "O homem se torna em Eu, através do Tu", sentencia de Martin Buber, o filósofo judeu germânico, que poderia servir de divisa ao personalismo cristão.

Segundo Lacroix, o Tu e o Nós precedem ao Eu, ou ao menos os acompanham. A revolução personalista é, a uma vez, comunitária, pois somente podemos nos realizar como pessoas no seio de uma comunicação real permanente e livre, ou seja, sem coerções opressivas exteriores, mas também sem egoísmos possessivos individualistas. Não é estranho que a filosofia de Jean Lacroix e de Enmanuel Mounier culmine em uma teoria do Amor.

Ser e amar.

Em oposição a Heidegger e Sartre, que pensam que a existência em comum, o Mitsein, se frustra pela luta infernal dos indivíduos que aspiram a controlar-se: reciprocamente. Lacroix afirma a realidade do Amor, devido a que o Eu só pode existir na medida em que existe para Outro. Ser é, pois, amar. Assim de radical e simples é esta filosofia do Amor. No entanto, o amor por si mesmo não cria identificação, e os amantes podem ignorar-se, arrebatados por sua paixão ofuscante. Também a simpatia descobre afinidades que se julga amor espontâneo. Pelo contrário, para o personalismo não é possível um amor sem conhecimento, ou seja, sem a consciência da presença de outra pessoa diferente. "O amor é cego", disse Lacroix, "porém é um cego perfeitamente lúcido".

O personalismo cristão, ao combater o individualismo e centrar sua filosofia em uma unidade comunitária, se aproxima do marxismo. Lacroix considera que os Manuscritos econômico-filosoficos de Marx é uma obra assombrosa em que se esboça uma teoria do Amor baseada na reciprocidade das consciências, e que significa a apertura entre todos os homens. Mas, como cristão, não crê que esta utopia possa se realizar na Terra. Porém disse: "O pensamento de Marx é muito rico e coerente para sofrer deformações cristianizastes. O ateísmo é uma das bases de toda sua filosofia. O cristianismo comunista é o fruto de uma confusão ou de uma mascarada". Porém, cristãos e comunistas podem ser bons e leais companheiros de viajem, ainda que Bergamin pontuasse: "Estou com os comunistas até a morte, porém, nem um passo mais".

Jean Lacroix manteve íntima relação com a revista espanhola Cruz y Raya, tanto afim com a Esprit, e com seu diretor, José Bergamín, de quem costumava recordar em suas conferencias uma citação que considerava ser a essência do personalismo: "A solidão do artista não é a de uma ilha, mas a de ria", e ao que acrescentou: "la mer toujours recommencé" (J. Paul Valery), ( o mar sempre recomeça). Para o recém falecido filósofo francês, José Bergamín e Joaquim Xirau são pensadores mui intimamente ligados ao personalismo cristão, influenciados ambos pela mística espanhola, sobre todo a de São João da Cruz.

Tradução de Lailson Castanha

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Fonte: El País. Quarta - feira 15/6/2011
Perfil: EN LA MUERTE DE UN FILÓSOFO CRISTIANO (Na morte de um filósofo cristão). http://www.elpais.com/articulo/cultura/FRANCIA/revolucion/personalista/Jean/Lacroix/elpepicul/19860722elpepicul_1/Tes
Imagem: Jean Lacroix.

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quinta-feira, 31 de março de 2011

O mistério entre nós.

O MISTÉRIO ENTRE NÓS

Aceitação sem objetivação.

Lendo sobre a odisséia do pensamento filosófico, logo em seus primeiros movimentos, deparamo-nos, através da leitura, com a razão filosófica definindo e sistematizando as coisas -, tanto as palpáveis, como as ainda inacessíveis. Pesquisando livros de história da filosofia – através de alguns pesquisadores, somos informados que a prática filosófica através de sua ação reflexiva e questionadora enfraqueceu, ou mesmo, invalidou tradições que não adotavam ou adotaram o pensamento reflexivo como parâmetro. Essa maneira de narrar à história esforça-se por indicar que a razão venceu a tradição, e, continua a nos sugerir que somente a razão valida qualquer pensamento, posicionamento ou crença.

Influenciados pela cultura racionalista que a atitude filosófica engendrou no Ocidente, tornamo-nos seres de definição. Somos definidores. Gostamos de sistematizar nossas idéias. Ficamos inquietos quando não temos uma posição definida sobre alguma coisa ou alguma idéia. Definimo-nos, definimos as coisas que nos cercam e também as coisas que não conhecemos. Definimos, por exemplo, Deus – que por sua constituição é inacessível ao ser mortal.

Envolvidos pela tradição racionalista/definidora não admitimos a possibilidade de não dominarmos a totalidade do real. Com essa idéia em mente, arrogamo-nos conhecedores da existência e capacitados a desvendar as coisas ainda não conhecidas. Cremos, entre outras coisas, entender a nossa situação existencial e a do nosso próximo. Acreditamos que tudo pode ser assimilado, inclusive as formas que se nos mostram inacessíveis. Neste movimento de racionalização, Deus passou a ser explicado e definido, como se fossemos capazes de entender claramente e de interpretar suas ações e desígnios. Passamos também a explicar o outro – como se o não-eu fosse um objeto em que pudéssemos estudar e investigar empiricamente, e com isso, explicá-lo.

Na ousada tentativa de definir o outro, terminamos por objetivá-lo. Interpretamos suas ações e movimentos com a mesma simplicidade que definimos os movimentos de uma máquina – definição concretizada por consequência de minuciosas observações empíricas.

Por mais que seja importante o uso de nossa razão, de nossos juízos visando o entendimento das coisas que fazem parte ou que se apresentam em nossa existência -, não podemos ignorar o fato de que nem tudo esta enquadrado na categoria das coisas claramente acessíveis a nossa percepção objetiva. Nem tudo pode ser totalmente avaliado, tocado ou desvendado pela nossa razão objetiva. Na medida em que percebemos que nem tudo pode ser alcançado pelo esforço intelectual, compreenderemos, por conseguinte, que não podemos ignorar, desprezar, nem subestimar o mistério.

Sobre o mistério, Emmanuel Mounier (1905-1950), filósofo francês, tece alguns comentários:

"O mistério é o problema em que me acho comprometido, em que estou em questão, eu em minha totalidade e em meu ser, tanto quanto a minha questão.

A sua essência é a de não de ao estar inteiramente perante mim. Todo o problema contém um mistério na medida em que é susceptível de um ecoar ontológico. Um mistério é um problema que tropeça nos seus próprios dados, que os invade, e ultrapassa por isso mesmo o simples problema. Longe de se dissolver nesse mergulho, atinge, pelo contrário, uma força de ricochete e impregna-se de uma luz interior que suscita até ao infinito novos problemas, alimentando uma atividade que decuplica a razão problemática." (1)

Seguindo o pensamento de Mounier, afirmamos que existem coisas que por sua peculiar condição, não se nos dão através do simples esforço racional. Existem coisas envolvidas de mistério, que por sua condição de “misteriosa” jamais poderão ser desvendadas, e, muito menos, definida de maneira objetiva. Dentre essas “coisas” – não palpáveis pelo mero esforço intelectual está Deus em sua inexaurível Glória e a pessoa humana em sua totalidade, que em sua vária constituição, também não pode ser alcançada simplesmente pelo esforço racional. Tanto Deus, como a pessoa humana estão envolvidas no mistério. Lembrado da definição do Mistério de Mounier, podemos nos apropriar dela para definirmos com qualidade o mistério:

Um mistério é um problema que tropeça nos seus próprios dados, que os invade, e ultrapassa por isso mesmo o simples problema. Longe de se dissolver nesse mergulho, atinge, pelo contrário, uma força de ricochete e impregna-se de uma luz interior que suscita até ao infinito novos problemas, alimentando uma atividade que decuplica a razão problemática. (Emmanuel Mounier).

Se valendo dos traços interpretativos de Mounier, podemos entender que tanto o mistério Deus, como a pessoa humana, ao modo da ação de um ricochete – toca-nos, se apresenta, porém, logo se afasta. Tendo essas características tão distintas -, logo, apesar de imanentes, são também transcendentes. Essa peculiar situação de estar e não estar, de ser conhecido e não ser totalmente percebido, impede qualquer homem ou mulher se arrogar conhecedor tanto de Deus em sua totalidade quanto da “pessoa humana” em sua multiplicidade. Se alguém ousa definir Deus ou a pessoa crendo ser óbvia sua definição, ainda não compreendeu nem Deus, nem a pessoa humana. Não entendeu ou não percebeu que essas formas estão envoltas em mistério, e, portanto, são indefiníveis.

Em uma das fontes literárias da antiguidade, que procuram explorar sobre o início da natureza humana – a literatura hebraica – o homem é apresentado com muita dignidade: “a imagem e semelhança de Deus”. O interessante dessa passagem bíblica é que ela cria, em quem entra em contato com sua mensagem, profundas e inquietantes indagações, a saber:

. O que é ser “a imagem e semelhança de Deus”?

. Como é a imagem de Deus?

. Em que sentido o homem é semelhança de Deus?

Ainda não foram encontradas respostas claras e objetivas para essas questões. Nas variadas tentativas de respostas, o que encontramos são divagações e conjecturas. Nenhuma idéia clara e muito menos indubitável foi dita para se firmar como resposta definitiva.

Se nos apropriarmos da ideia de ser Deus um ser inacessível ao olhar objetivante, talvez, pelo menos poderemos compreender um aspecto do espírito do texto, a saber: um ser a imagem e semelhança de Deus – como Deus não pode ser conhecido com o olhar objetivante. Erramos quando tratamos como óbvias as descrições direcionadas a Deus.

Erramos também, quando, como produto de esforços intelectuais ou pesquisas empíricas, acreditamos compreendemos efetivamente a pessoa humana. É importante ressaltarmos que, acreditar que se compreendeu, não é o mesmo que compreender efetivamente.

Como Protágoras tendemos a acreditar que "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são". Levando a sério a ideia de que unicamente o homem é aquele que dá sentido as coisas, não só somos levados a significá-las, como também a objetivá-las. Em outras palavras podemos dizer que o homem é que dá sentido a todos as coisas, as significa a sua própria mercê. O homem dá significação às coisas intencionalmente, para usá-las como o convém. Assim, deus foi usado para legitimar ditaduras, os mais variados abusos, intolerância, desrespeito e desumanização. Assim boa parte dos seres humanos são usados, como objetos, como meio para que alguns alcancem conforto. Assim, por exemplo, percebemos seres humanos sendo tratados nas empresas apenas como “trabalhadores”, nas diversas mídias como “consumidores”, nas políticas nacionais e internacionais como mercado. Percebe-se que o ser humano é sempre tratado como um meio, sua pessoalidade, e como tal, suas características, necessidades, peculiaridades, anseios não são levadas em consideração. Nossa sociedade pragmatista escolheu tratar o ser humano não como um fim em si mesmo, mas como um meio para o alcance de fins.

O mesmo se dá com o "deus" da sociedade pragmatista. Ele está sendo usado e tratado quase que apenas, como uma possibilidade de pessoas alcançarem os seus desejos. Ou seja, um meio para o alcance de fins.



Nossa postura deve ser mudada. Apesar da importância da razão e da intelectualidade que tanto conforto ofereceu a atual sociedade, devemos diferenciar o nosso tratamento entre coisas e coisas. Se não existe nenhum problema moral em tratar a matéria com um meio para finalidades especificas, o mesmo não pode ser dito em relação a Deus e a pessoa humana. Com as coisas envolvidas de mistério, devemos considerar seu apelo a não objetivação.

Não podemos tratar Deus e nem a pessoa humana, caracterizando-os da mesma forma que fazemos com uma máquina quando a estudamos. Diferentemente da máquina que por sua característica objetiva, tem suas funções definidas, Deus ou mesmo o ser humano transcendem a nossa capacidade investigativa, pelo fato de não se caracterizarem como objetos, e por que, estando envolvidas de mistérios, não podemos e não devemos tentar possuí-los.

Pode-se acolher o mistério, porém não se pode possuí-lo. Pode-se até mesmo investigar o mistério, mas, jamais conseguiremos defini-lo positivamente.

As ciências que tratam o ser humano como um ser de respostas mecânicas aos estímulos externos ignoram o fato de que nem toda resposta exteriorizada – é de fato resposta verdadeira. Nem sempre, em todas as respostas, há a real intencionalidade daquele que responde. Muitos teóricos ignoram, por exemplo, que umas das armas que o ser humano usa para fugir da objetivação é a simulação e dissimulação. O ser humano pode simular acolhedor de uma influencia pare ser livrar das investigações daquele que o estuda, ou mesmo, da pressão da sociedade que tenta influenciá-lo. Conhecer as respostas a estímulos, não se trata de perceber as motivações últimas das pessoas. Mesmo sendo verdade que o outro influencia, é também verdade que nem sempre a influencia que recebemos do outro é recebida exatamente igual a ação que intentamos aderir. Nossa pessoalidade transforma qualquer adesão. Por exemplo, podemos ser influenciados a crer no Cristo, sem com isso percebermos o Cristo da mesma maneira daquele que nos influenciou. No Antigo Israel, Deus era apresentado de acordo com as circunstâncias. Por isso, às vezes, equivocadamente temos a impressão de que as Escrituras apresentam deuses diferentes, o Deus do Velho Testamento e o Deus do Novo Testamento. No caso, em cada ocasião, em cada momento, Deus apresenta apenas aspectos de seu ser, não a sua totalidade. Devemos perceber que se manifestar não significa desvelar-se. O mesmo se dá com o ser humano. Responder a um estímulo não significa se abrir para a pesquisa positiva e muito menos para a compreensão do outro que investiga.

Respeitar o mistério que envolve a pessoa é respeitá-la como pessoa. Quando estivermos dispostos a nos desfazermos de nossa tendência objetivista e buscar compreender Deus e a pessoa humana através do acolhimento e da aproximação humilde, teremos muito mais chances de compreender-los, em muitos aspectos – e com isso avançar no entendimento das questões que as envolvem.

Se não é através da razão objetiva que as conheceremos, talvez seja através do amor -, que se aproxima sem querer dominar -, que encontraremos abertura que nos permita perscrutar ou ao menos nos aproximar do grande mistério que os envolvem – não com o fim de objetivamente defini-los, mas, apenas com a intenção de melhor os compreender, para que dessa forma, possamos nos relacionar com eles de maneira mais adequada.

Lailson Castanha

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(1) MOUNIER, Emmanuel. Introdução aos existencialismos. Tradução de João Benard da Costa. São Paulo: Livraria Duas cidades, 1963, p.39.

Gravura: Pandora (1896) - Waterhouse, John William (1849-1917).

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Intentamos propagar o personalismo, bem como suas principais ideias e seus principais pensadores, com a finalidade de incitar o visitante desse espaço a ponderar de forma efetiva sobre os assuntos aqui destacados e se aprofundar na pesquisa sobre essa inspiração filosófica, tão bem encarnada nas obras e nos atos do filósofo francês, Emmanuel Mounier.

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Jean Lacroix, Emmanuel Mounier e Jean-Marie Domenach

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