Emmanuel Mounier (1905-1950) e sua filha Anne

Espaço para difusão da filosofia personalista de Emmanuel Mounier e para ponderações de vários temas importantes, tendo como referência essa perspectiva filosófica.

quinta-feira, 31 de março de 2011

O mistério entre nós.

O MISTÉRIO ENTRE NÓS

Aceitação sem objetivação.

Lendo sobre a odisséia do pensamento filosófico, logo em seus primeiros movimentos, deparamo-nos, através da leitura, com a razão filosófica definindo e sistematizando as coisas -, tanto as palpáveis, como as ainda inacessíveis. Pesquisando livros de história da filosofia – através de alguns pesquisadores, somos informados que a prática filosófica através de sua ação reflexiva e questionadora enfraqueceu, ou mesmo, invalidou tradições que não adotavam ou adotaram o pensamento reflexivo como parâmetro. Essa maneira de narrar à história esforça-se por indicar que a razão venceu a tradição, e, continua a nos sugerir que somente a razão valida qualquer pensamento, posicionamento ou crença.

Influenciados pela cultura racionalista que a atitude filosófica engendrou no Ocidente, tornamo-nos seres de definição. Somos definidores. Gostamos de sistematizar nossas idéias. Ficamos inquietos quando não temos uma posição definida sobre alguma coisa ou alguma idéia. Definimo-nos, definimos as coisas que nos cercam e também as coisas que não conhecemos. Definimos, por exemplo, Deus – que por sua constituição é inacessível ao ser mortal.

Envolvidos pela tradição racionalista/definidora não admitimos a possibilidade de não dominarmos a totalidade do real. Com essa idéia em mente, arrogamo-nos conhecedores da existência e capacitados a desvendar as coisas ainda não conhecidas. Cremos, entre outras coisas, entender a nossa situação existencial e a do nosso próximo. Acreditamos que tudo pode ser assimilado, inclusive as formas que se nos mostram inacessíveis. Neste movimento de racionalização, Deus passou a ser explicado e definido, como se fossemos capazes de entender claramente e de interpretar suas ações e desígnios. Passamos também a explicar o outro – como se o não-eu fosse um objeto em que pudéssemos estudar e investigar empiricamente, e com isso, explicá-lo.

Na ousada tentativa de definir o outro, terminamos por objetivá-lo. Interpretamos suas ações e movimentos com a mesma simplicidade que definimos os movimentos de uma máquina – definição concretizada por consequência de minuciosas observações empíricas.

Por mais que seja importante o uso de nossa razão, de nossos juízos visando o entendimento das coisas que fazem parte ou que se apresentam em nossa existência -, não podemos ignorar o fato de que nem tudo esta enquadrado na categoria das coisas claramente acessíveis a nossa percepção objetiva. Nem tudo pode ser totalmente avaliado, tocado ou desvendado pela nossa razão objetiva. Na medida em que percebemos que nem tudo pode ser alcançado pelo esforço intelectual, compreenderemos, por conseguinte, que não podemos ignorar, desprezar, nem subestimar o mistério.

Sobre o mistério, Emmanuel Mounier (1905-1950), filósofo francês, tece alguns comentários:

"O mistério é o problema em que me acho comprometido, em que estou em questão, eu em minha totalidade e em meu ser, tanto quanto a minha questão.

A sua essência é a de não de ao estar inteiramente perante mim. Todo o problema contém um mistério na medida em que é susceptível de um ecoar ontológico. Um mistério é um problema que tropeça nos seus próprios dados, que os invade, e ultrapassa por isso mesmo o simples problema. Longe de se dissolver nesse mergulho, atinge, pelo contrário, uma força de ricochete e impregna-se de uma luz interior que suscita até ao infinito novos problemas, alimentando uma atividade que decuplica a razão problemática." (1)

Seguindo o pensamento de Mounier, afirmamos que existem coisas que por sua peculiar condição, não se nos dão através do simples esforço racional. Existem coisas envolvidas de mistério, que por sua condição de “misteriosa” jamais poderão ser desvendadas, e, muito menos, definida de maneira objetiva. Dentre essas “coisas” – não palpáveis pelo mero esforço intelectual está Deus em sua inexaurível Glória e a pessoa humana em sua totalidade, que em sua vária constituição, também não pode ser alcançada simplesmente pelo esforço racional. Tanto Deus, como a pessoa humana estão envolvidas no mistério. Lembrado da definição do Mistério de Mounier, podemos nos apropriar dela para definirmos com qualidade o mistério:

Um mistério é um problema que tropeça nos seus próprios dados, que os invade, e ultrapassa por isso mesmo o simples problema. Longe de se dissolver nesse mergulho, atinge, pelo contrário, uma força de ricochete e impregna-se de uma luz interior que suscita até ao infinito novos problemas, alimentando uma atividade que decuplica a razão problemática. (Emmanuel Mounier).

Se valendo dos traços interpretativos de Mounier, podemos entender que tanto o mistério Deus, como a pessoa humana, ao modo da ação de um ricochete – toca-nos, se apresenta, porém, logo se afasta. Tendo essas características tão distintas -, logo, apesar de imanentes, são também transcendentes. Essa peculiar situação de estar e não estar, de ser conhecido e não ser totalmente percebido, impede qualquer homem ou mulher se arrogar conhecedor tanto de Deus em sua totalidade quanto da “pessoa humana” em sua multiplicidade. Se alguém ousa definir Deus ou a pessoa crendo ser óbvia sua definição, ainda não compreendeu nem Deus, nem a pessoa humana. Não entendeu ou não percebeu que essas formas estão envoltas em mistério, e, portanto, são indefiníveis.

Em uma das fontes literárias da antiguidade, que procuram explorar sobre o início da natureza humana – a literatura hebraica – o homem é apresentado com muita dignidade: “a imagem e semelhança de Deus”. O interessante dessa passagem bíblica é que ela cria, em quem entra em contato com sua mensagem, profundas e inquietantes indagações, a saber:

. O que é ser “a imagem e semelhança de Deus”?

. Como é a imagem de Deus?

. Em que sentido o homem é semelhança de Deus?

Ainda não foram encontradas respostas claras e objetivas para essas questões. Nas variadas tentativas de respostas, o que encontramos são divagações e conjecturas. Nenhuma idéia clara e muito menos indubitável foi dita para se firmar como resposta definitiva.

Se nos apropriarmos da ideia de ser Deus um ser inacessível ao olhar objetivante, talvez, pelo menos poderemos compreender um aspecto do espírito do texto, a saber: um ser a imagem e semelhança de Deus – como Deus não pode ser conhecido com o olhar objetivante. Erramos quando tratamos como óbvias as descrições direcionadas a Deus.

Erramos também, quando, como produto de esforços intelectuais ou pesquisas empíricas, acreditamos compreendemos efetivamente a pessoa humana. É importante ressaltarmos que, acreditar que se compreendeu, não é o mesmo que compreender efetivamente.

Como Protágoras tendemos a acreditar que "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são". Levando a sério a ideia de que unicamente o homem é aquele que dá sentido as coisas, não só somos levados a significá-las, como também a objetivá-las. Em outras palavras podemos dizer que o homem é que dá sentido a todos as coisas, as significa a sua própria mercê. O homem dá significação às coisas intencionalmente, para usá-las como o convém. Assim, deus foi usado para legitimar ditaduras, os mais variados abusos, intolerância, desrespeito e desumanização. Assim boa parte dos seres humanos são usados, como objetos, como meio para que alguns alcancem conforto. Assim, por exemplo, percebemos seres humanos sendo tratados nas empresas apenas como “trabalhadores”, nas diversas mídias como “consumidores”, nas políticas nacionais e internacionais como mercado. Percebe-se que o ser humano é sempre tratado como um meio, sua pessoalidade, e como tal, suas características, necessidades, peculiaridades, anseios não são levadas em consideração. Nossa sociedade pragmatista escolheu tratar o ser humano não como um fim em si mesmo, mas como um meio para o alcance de fins.

O mesmo se dá com o "deus" da sociedade pragmatista. Ele está sendo usado e tratado quase que apenas, como uma possibilidade de pessoas alcançarem os seus desejos. Ou seja, um meio para o alcance de fins.



Nossa postura deve ser mudada. Apesar da importância da razão e da intelectualidade que tanto conforto ofereceu a atual sociedade, devemos diferenciar o nosso tratamento entre coisas e coisas. Se não existe nenhum problema moral em tratar a matéria com um meio para finalidades especificas, o mesmo não pode ser dito em relação a Deus e a pessoa humana. Com as coisas envolvidas de mistério, devemos considerar seu apelo a não objetivação.

Não podemos tratar Deus e nem a pessoa humana, caracterizando-os da mesma forma que fazemos com uma máquina quando a estudamos. Diferentemente da máquina que por sua característica objetiva, tem suas funções definidas, Deus ou mesmo o ser humano transcendem a nossa capacidade investigativa, pelo fato de não se caracterizarem como objetos, e por que, estando envolvidas de mistérios, não podemos e não devemos tentar possuí-los.

Pode-se acolher o mistério, porém não se pode possuí-lo. Pode-se até mesmo investigar o mistério, mas, jamais conseguiremos defini-lo positivamente.

As ciências que tratam o ser humano como um ser de respostas mecânicas aos estímulos externos ignoram o fato de que nem toda resposta exteriorizada – é de fato resposta verdadeira. Nem sempre, em todas as respostas, há a real intencionalidade daquele que responde. Muitos teóricos ignoram, por exemplo, que umas das armas que o ser humano usa para fugir da objetivação é a simulação e dissimulação. O ser humano pode simular acolhedor de uma influencia pare ser livrar das investigações daquele que o estuda, ou mesmo, da pressão da sociedade que tenta influenciá-lo. Conhecer as respostas a estímulos, não se trata de perceber as motivações últimas das pessoas. Mesmo sendo verdade que o outro influencia, é também verdade que nem sempre a influencia que recebemos do outro é recebida exatamente igual a ação que intentamos aderir. Nossa pessoalidade transforma qualquer adesão. Por exemplo, podemos ser influenciados a crer no Cristo, sem com isso percebermos o Cristo da mesma maneira daquele que nos influenciou. No Antigo Israel, Deus era apresentado de acordo com as circunstâncias. Por isso, às vezes, equivocadamente temos a impressão de que as Escrituras apresentam deuses diferentes, o Deus do Velho Testamento e o Deus do Novo Testamento. No caso, em cada ocasião, em cada momento, Deus apresenta apenas aspectos de seu ser, não a sua totalidade. Devemos perceber que se manifestar não significa desvelar-se. O mesmo se dá com o ser humano. Responder a um estímulo não significa se abrir para a pesquisa positiva e muito menos para a compreensão do outro que investiga.

Respeitar o mistério que envolve a pessoa é respeitá-la como pessoa. Quando estivermos dispostos a nos desfazermos de nossa tendência objetivista e buscar compreender Deus e a pessoa humana através do acolhimento e da aproximação humilde, teremos muito mais chances de compreender-los, em muitos aspectos – e com isso avançar no entendimento das questões que as envolvem.

Se não é através da razão objetiva que as conheceremos, talvez seja através do amor -, que se aproxima sem querer dominar -, que encontraremos abertura que nos permita perscrutar ou ao menos nos aproximar do grande mistério que os envolvem – não com o fim de objetivamente defini-los, mas, apenas com a intenção de melhor os compreender, para que dessa forma, possamos nos relacionar com eles de maneira mais adequada.

Lailson Castanha

______

(1) MOUNIER, Emmanuel. Introdução aos existencialismos. Tradução de João Benard da Costa. São Paulo: Livraria Duas cidades, 1963, p.39.

Gravura: Pandora (1896) - Waterhouse, John William (1849-1917).

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2 comentários:

  1. Esse texto me despertou para uma vontade, a vontade de discutir esse e alguns outros assuntos via e-mail. Encaro isso como trocar cartas, uma oportunidade de dialogar com uma eloqüência diferenciada, afinal, numa conversa comum ficamos fadados ao tempo específico da situação. Trocar e-mails é mais livre e pode ser registrado, o que é bacana.
    Se estiver interessado, deixo aqui o ingresso para me achar: daviolao27@gmail.com

    Abraço!

    Davi

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  2. Saúde, companheiro Davi.

    Fico muito feliz ao saber que de alguma maneira você se sentiu provocado pelo texto. Esse é o propósito da filosofia enquanto manifestação racional. Levar o ser humano a reflexão das coisas comuns e das coisas incomuns. Das coisas palpáveis e das coisas mais altas.
    Dialogar com você, mesmo que virtualmente, é um prazer.

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