Emmanuel Mounier (1905-1950) e sua filha Anne

Espaço para difusão da filosofia personalista de Emmanuel Mounier e para ponderações de vários temas importantes, tendo como referência essa perspectiva filosófica.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

A inadequação como influxo de criação e de transformação


A INADEQUAÇÃO COMO INFLUXO DE CRIAÇÃO E DE TRANSFORMAÇÃO

Muitos filósofos e teólogos consideram a condição humana, uma condição trágica. Essa condição trágica está em conexão direta com a nossa inadequação ao que se considera ideal. Somos colocados na existência, em determinada circunstância. Fomos postos em um posto existencial que não escolhemos. Estamos aqui, em dada circunstância, a saber: determinada geografia, inseridos em um específico contexto histórico, cultural, social, religioso, relacional, etc., tudo isso, em maior parte, sem nossa escolha direta; fomos embutidos. Fomos embutidos sem uma moldagem, empurrados -, sem adequação. O meu ser colocado nessa circunstância, não se apresenta encaixado nela como uma mão a luva, outrossim, a circunstância não se faz para nós como um perfeito encaixe, somo nós que temos que nos resolver, se adequar, a fim de que nossa existência não se faça total deslocamento, total inadequação. Não somos mão, e, muito menos, a circunstância que nos é dada, luva; temos de nos resolver a partir dessa inadequação, a partir desse desencaixe.  

Porém, como a vida humana não pode ser comparada, em absoluto, a objetos, nem sempre o que se faz reprovável na situação de sujeito objeto, de apropriação e uso, não se faz totalmente reprovável na vivência humana. Em relação ao que estamos a refletir, se a inadequação do uso de um objeto, para determinado fim, é reprovável , como, e, por exemplo, o uso de uma panela para pregar um prego em uma parede, a inadequação humana em relação a sua circunstância, a sua existência, nem sempre.

O fato de sermos inadequados diante da circunstância que nos é dada, é o fator preponderante para nosso enriquecimento como pessoa. Se fôssemos dados, na existência, como encaixe, como mão à luva, não nos moveríamos, não buscaríamos novas possibilidades. Para uma existência saudável, uma existência de pessoas, em detrimento a existência de sujeito e indivíduo, ou seja, em rejeição a existências encaixadas, conformadas, submissas, determinadas, individualizadas -, fechadas em si mesmo - , autodeterminadas, satisfeitas em si mesmas -,  a inadequação é, assaz, benigna.

A inadequação diante do desejo de chegar logo a certo  lugar e a distância que se faz entre o ponto de partida e o local visado , fez o homem criar o veículo, que, com a velocidade acentuada, diminuiu o tempo percorrido entre um ponto e outro.  A tecnologia, surge através da busca humana por adequações objetivas. A inadequação da linguagem formal, objetiva, de nossa postura, de nossas ações  em relação ao mistério, aos sentimentos, a paixão, ao olhar subjetivo, incitou a criação do mito, da poesia, da arte, e da religião, da cortesia, das etiquetas, etc. Nossa inadequação foi e continua sendo um fator preponderante para a criação.

O que nos move, o que nos transforma, é a nossa condição de inadequados. Podemos dizer: o que nos move, é a nossa ânsia por adequação. Teorias foram criadas, visando a adequação -,  do que é, do que está sendo, do que somos -, ao dever ser; do inadequado ao adequado, do desconforto ao conforto. A palavra teoria, em sua raiz grega, entre outras definições, tem o sentido de contemplação, ou mais diretamente, especulação.[1] O teórico, ou pensador, é aquele que vive uma vida contemplativa, ou seja, uma vida teórica. Portanto, por conta de nossa inadequação, somos levados a contemplação - somos levados, tanto a contemplar a nós mesmos, em busca de compreensão, como, também,  a sair de nós mesmos, através da reflexão, em busca da adequação entre o que sou e onde estou inserido, entre Eu e a Minha Circunstância. A célebre afirmação de Ortega y Gasset: " Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim", indica que em nossa vida algo deve ser feito, e que a circunstância em que vivo, constitui-se como substrato de meu eu. Não sou um eu dado estabelecido, sou o que sou, sendo minha circunstância, a saber, estou em determinada circunstância, em minha circunstância, e, também, sou uma construção circunstancial; não há eu sem minha circunstância. Em outro momento, o filósofo espanhol afirma: "Sendo, pois, a vida em sua própria substância  circunstancial, é evidente que, embora acreditemos no contrario, tudo o que fazemos, fazemos em vista das circunstâncias".  E, também, afirma: " (...) a ideia é uma ação que o homem realiza em vista de determinada circunstância e com uma finalidade precisa (...)"[2]. Portanto, a circunstância precisa ser salva, e essa necessidade já significa a inadequação entre o nosso Eu e nossa "vida vivida". Formamo-nos nessa tentativa de salvar nossa circunstância, nos desenvolvemos através dessa busca. Somos o que somos, porque imbuídos nesse anseio. Daí, nossa peculiaridade. Disso, nossa procura e abertura a também, peculiar, pessoa do outro, que  para nós, faz-se intensa novidade, ou desafio, pois em semelhança a nossa condição -, cria, transforma-se, faz-se -, envolvido na ação de salvar sua circunstância, envolvido na busca de adequação. Inclusive, seu acolhimento a nossa procura, está conectado com sua busca por adequação, por salvar sua circunstância.

Sobre a pessoa do outro, o filósofo francês, Emmanuel Mounier afirma: "O mundo dos outros não é um jardim de delícias. É uma provocação permanente à luta, à adaptação e à superação".[3] Em relação ao outro, segundo Mounier, somos também inadequados, porém, dessa percepção de inadequação somos incitados à adaptação e a superação. A beleza das relações humanas, não se dá na perfeição entre os pares, mas na tentativa do alcance a perfeição. Na tentativa de firmar relações, ensaiamos. O ensaio é construção da relação, e o ensaio existe, porque existe a inadequação entre o que dever ser feito, e nossa atual condição. Vivemos ensaiando, entre erros e tentativa de acerto, entre inadequação a tentativas de adequação. Em nossa inadequação, somos incitados à superação das diversas barreiras que separam pessoas de pessoas. Quando, finalmente, nos aproximamos de quem estava de nós separado, introduz-se o ensaio, o aprendizado, a tentativa de dançar corretamente com o nosso parceiro existencial. Os descompassos, as pisadas nos pés, nem sempre deve desestimular a continuidade do ensaio, ou a rejeição ao parceiro, pelo contrário, deve ser um estímulo ainda maior para uma dança peculiar no grande e gostoso palco da existência.  A inadequação entre um dançarino e outro, pode-se fazer um estímulo, ainda maior, de se promover um espetáculo diferente dos já vistos no grande palco da vida.

É fundamental a compreensão de que nossa inadequação, e a consequente necessidade por adequação, é uma condição inexorável de todo o ser humano saudável, pois, além de aquietar nosso espírito, por fazer-nos perceber que nossa condição não é um fato isolado, pode nos motivar a ensaiar mais em busca da adequação, a se relacionar mais, a sermos mais tolerantes, conosco e com o outro, a refletir com mais intensidade e responsabilidade, visando a constante transformação, do que estamos sendo para o que devemos ser.

 Lailson Castanha


[1] FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia. 2ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
[2] Ibdem
[3] MOUNIER, Emmanuel. O personalismo; tradução Artur Mourão. 1ed. Lisboa: Texto & Grafia, 2010. p. 37,38.
Imagem: Desencaixe, Xilogravura, de Rubem Grilo

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