REFLEXÃO SOBRE O SER COMUNITÁRIO
Antonio Glauton Varela Rocha1
A necessidade fundamental do compartilhar
Em muitas discussões sobre a comunitariedade humana, surge como objeção a afirmação de que se faz uma confusão entre as ordens do dever-se e do ser. A confusão seria a de que por defendermos o valor da sociabilidade e da colaboração humanas colocamos estas dimensões como parte do ser do homem, quando na verdade o homem não é em si comunitário essencialmente, apesar de que deva buscar a colaboração.
Sem querer entrar na questão sobre a possibilidade do ser e do dever-ser serem separados, sigo o raciocínio iniciado pela objeção citada e faço agora a minha própria objeção: a comunitariedade não é da ordem do dever-ser, é da ordem do ser. Na realidade é o agir comunitário que podemos classificar como sendo da ordem do dever-ser (e não a comunitariedade em si), o que nos coloca defronte de uma característica própria do ser humano, ele é o único ser vivo que pode agir em desconformidade com a sua própria natureza – não digo agir sem a natureza, mas desafiar a própria natureza.
Efetivamente, para existir como pessoa o ser humano precisa compartilhar elementos básicos com os outros. Por mais que dois interlocutores discordem sobre um assunto debatido, eles precisam estar de acordo com o significado de uma série de simbologias que está por trás do sistema lingüístico em que eles travam o diálogo. Além disto, é preciso ter também em comum uma visão básica sobre a realidade, como a certeza mútua de que há diante de si um interlocutor. Normalmente compartilhamos uma visão de mundo que está por trás das nossas análises sobre o próprio mundo, e é esta mesma visão de mundo compartilhada que permite as discordâncias sobre as várias análises. Ou seja, independente do conteúdo compartilhado, compartilhar é sempre algo fundamental à existência humana, e com isso, a vida comunitária também deve ser compreendida como fundamental, pois nós não compartilhamos algo conosco mesmos, mas com um outro. No entanto, o ser humano pode se distanciar desta condição e usar a sua necessária comunitariedade para viver como se a vida comunitária não fosse completamente essencial. É a isto que me referia quando dizia que o homem pode desafiar sua natureza ou essência.
Em condições normais, nunca veremos um leão vegetariano, nem este mesmo leão acordando antes de satisfazer o sono completamente para se preparar melhor para a caça. Neste caso vemos as características próprias deste animal se imporem determinando as sua ações2 . O homem pode, no decorrer de sua vida, escolher (movido por princípios livremente escolhidos) não comer mais carne. Pode escolher dormir bem menos durante o dia para realizar tarefas que ele considera fundamentais, ou criar sistemas de organização sócio-econômicos que obriguem um espaço de tempo destinado ao sono bem limitado, mesmo que a sua necessidade de sono permaneça inalterada diante desta motivação. Isto é possível porque a consciência e a liberdade permitem ao homem driblar algumas de suas determinações naturais.
Se pensarmos numa espécie de abelha própria de vida em colméias e que foi retirada da sua colméia e por algum motivo não consegue mais retornar, ficando completamente isolada de outras abelhas; não teremos dificuldade em prever seu futuro próximo: a morte. Apesar de anatomicamente ela ainda ser capaz de produzir favos e mel ela não irá construir seu próprio ninho e seu próprio mel para passar o restante de seus dias. Isto acontece porque ela está presa a um aspecto fundamental de sua essência: a sociabilidade. Na natureza, em geral todo animal fundamentalmente social terá profunda dificuldade – ou mesmo completa impossibilidade – de sobreviver se não estiver em seu ambiente social próprio. Mas no caso do homem acontece diferente. Sua racionalidade e liberdade lhe permitem usufruir de seu contexto social usando-o a seu favor – muitas vezes sem dar uma contrapartida proporcional – e viver como se não se precisasse dos outros, imersos num individualismo pretensamente natural, mas que não passa de um individualismo parasitário.
Sobre o pretenso egoísmo natural do ser humano
Normalmente se fala que o “egoísmo” natural de qualquer criança nos seus primeiros meses e anos de vida seja uma prova cabal de que a verdadeira natureza humana é individualista. No entanto, é interessante constatar que a fase em que somos mais egoístas coincida com a fase em que somos mais dependentes dos outros. Uma fase em que se percebe muito claramente como a idéia de um indivíduo atomizado, isolado e independente é frágil e se fosse aplicada a este momento da vida humana (supostamente ícone do egoísmo e do individualismo natural do homem) implicaria sua morte inevitável.
No homem há uma conjugação de uma natureza individual e social, que podemos chamar de dimensões pessoal e comunitária. Uma não exclui a outra e na verdade só há humanidade plena na manifestação interdependente destas duas dimensões. A confusão sobre a relação ente estas dimensões acontece por uma característica da dimensão comunitária: ela não é tão evidente quanto à compreensão que o homem tem de sua própria singularidade.
Na realidade nem podemos falar de percepção da individualidade completamente e naturalmente evidente. Esta percepção é posterior à percepção do outro. Como dizia Mounier, é no espelho do outro que a criança se reconhece distinta deste outro de modo que a percepção do “eu” é ao menos simultânea ao surgimento do “nós”. Mas apesar de ser constituída posteriormente ao encontro, a singularidade tende naturalmente a se tornar cada vez mais consciente e mais vívida.
As percepções que apontam para a individualidade são mais numerosas, pois o que nós temos de mais próximos a nós somos nós mesmos, por isso, também, são percepções mais diretas: a fome que eu sinto é sempre primeiramente a minha fome, do mesmo modo se sucede com a dor, a sede, e assim por diante. Chegamos a ser capazes de entender estas situações nos outros porque antes já passamos por elas e agora temos a capacidade de nos ver na situação alheia, de tal modo, a situação do outro adquire sentido para nós e nós podemos reconhecer neles estas circunstâncias. Ou seja, o nosso entendimento sobre o outro é posterior e indireto (mediado pelo eu)3 . Mas aí é que mora perigo, pelo fato de serem experiências mais diretas e por isso mais numerosas, e também mais impactantes (especialmente quando se tornam conscientes), estas percepções da singularidade não são suficientes para provar que a natureza do homem é individualista. Se é verdade que, alcançado o nível da consciência, o nós é mediado pelo eu, originalmente, quando ainda não há consciência manifesta é o eu que é mediado pelo nós (levando em conta a formação da personalidade humana4). O problema é que ter consciência do nós é muito mais complexo do que ter consciência do eu, a singularidade é muito mais evidente do que a sociabilidade. Daí a aparente evidência do primado no eu sobre o nós quando estamos nos momentos iniciais de uma reflexão sobre a sociabilidade humana; às vezes parece tão evidente, que tomamos este início por fim.
No entanto, ainda que a percepção do eu seja mais evidente que a percepção do nós isto não é suficiente para determinar o grau de destaque que o indivíduo irá receber na diversas sociedades. O atual reinado do indivíduo é apenas uma manifestação histórica no meio de muitas outras ocorridas e possíveis. Uma determinada visão de mundo, que podemos chamar de horizonte, é que define os destinos da relação entre indivíduo e sociedade.
Durkheim faz uma distinção interessante a respeito da relação entre os indivíduos e a sociedade no desenrolar da história. Ele fala de dois tipos fundamentais de solidariedade: a mecânica e a orgânica 5. As duas geram organizações sociais bem distintas. A solidariedade mecânica tem como predomínio a semelhança. Os indivíduos não são diferenciados e se organizam a partir de costumes e valores comuns. Há como que uma consciência coletiva, que perpassa as consciências individuais, mas que tem uma espécie de vida própria. Já a solidariedade orgânica é posterior e é marcada pela diferenciação social. Destacam-se as diferenças entre os indivíduos e a unidade do grupo tem menos prioridade em relação às preferências individuais. Segundo Durkheim, ela nasce a partir da divisão social do trabalho.
A ênfase atual no individualismo não é, pois, mais que um fruto de uma visão de mundo que se sobrepôs a outra. O mesmo poderia ser dito se a ênfase atual fosse da colaboração mútua entre as pessoas. Segundo Durkheim, a necessidade de formar laços comunitários e de compartilhar valores comuns foi inicialmente predominante nas comunidades humanas. Só depois o processo de diferenciação aconteceu. Não é, em última instância esta ênfase que retrata a natureza humana, pois dependendo das circunstancias ela pode até ir contra a natureza humana (para mim é exatamente isto que hoje acontece). A questão aqui é mais profunda, é preciso pensar sobre o modo próprio do homem existir no mundo (é a isto que me referi ao falar no início do texto sobre a necessidade fundamental do compartilhar para se falar de uma vida plenamente humana), e como as dimensões da singularidade e da sociabilidade se manifestam neste existir.
O outro lado da moeda
Chegando a este ponto é preciso um esclarecimento a fim de evitar um engano que pode surgir de uma apreciação apressada sobre nossa fala até o momento. A exaltação que fiz da sociabilidade não é feita para negar o valor da singularidade humana. O que eu quis dizer é que a sociabilidade é uma condição fundamental da existência plenamente humana, mas a singularidade também o é. Como já acenei no presente artigo: “uma não exclui a outra e na verdade só há humanidade plena na manifestação interdependente destas duas dimensões”. Kierkegaard já destacava o valor do singular6 frente à tentativa de universalização do conceito. Esta valorização não pode ser esquecida, mas isto não precisa ser feito a partir da desvalorização da sociabilidade. O grande dilema sobre a conciliação do singular e do coletivo pode ser pensado a partir de outros termos. O contraponto da singularidade em questão seria a comunidade – e não a coletividade ou o público – onde o singular é reconhecido como tal, sob pena de não podermos falar de comunidade se assim não for.
O problema sobre a noção do singular é a referência que se está jogo quando se invoca este termo. Se antes o que se tinha em mente era a irrepetibilidade (a especificidade de cada ser humano), a partir da modernidade passou-se a ter em mente prioritariamente um ser independente e isolado7. Com tais referências, o singular ganha uma capa de insociabilidade que originalmente não possuía. Em nosso tempo convém despir o termo destes acréscimos para pensá-lo em consonância com a sociabilidade.
______
(1) Mestre em filosofia, professor de Filosofia na Faculdade Católica Rainha do Sertão e Faculdade Católica do Cariri, no Estado de Ceará.
(2) A evolução biológica poderia ser compreendida como uma forma ir além deste determinismo, mas neste caso estamos muito mais diante de eventos frutos de um acaso (mutações) ou de uma ação da natureza sobre ela mesma (a seleção natural) do que de uma “escolha” particular que contraria as regras impostas. Além do mais, uma evolução se repassa às descendências e dura milhões de gerações para se efetivar ou se aperfeiçoar. No caso homem vemos este ato desafiador se concretizar várias vezes ou mesmo continuamente no espaço de uma vida em particular.
(3) Antes, quando não estávamos ainda no nível do entendimento, o eu era mediado pelo outro, agora, alcançado o nível da consciência, o caminho se inverte.
(4) A formação de uma consciência do nós é mediada pela formação do eu, mas a formação do eu é mediado pela experiência do nós.
(5) ARON, Raymond. Etapas do pensamento sociológico, p. 287.
(6)"Nos gêneros animais sempre vale o princípio de que 'o indivíduo é inferior ao gênero'. O gênero humano, em que cada indivíduo é criado â imagem de Deus, tem essa característica, de o singular ser superior ao gênero" (Diálogos, X2, A, -126).
(7) VINUESA, José Maria. El Concepto de Autopropiedad. Revista Acontecimiento, p. 16.
Antonio Glauton Varela Rocha1
A necessidade fundamental do compartilhar
Em muitas discussões sobre a comunitariedade humana, surge como objeção a afirmação de que se faz uma confusão entre as ordens do dever-se e do ser. A confusão seria a de que por defendermos o valor da sociabilidade e da colaboração humanas colocamos estas dimensões como parte do ser do homem, quando na verdade o homem não é em si comunitário essencialmente, apesar de que deva buscar a colaboração.
Sem querer entrar na questão sobre a possibilidade do ser e do dever-ser serem separados, sigo o raciocínio iniciado pela objeção citada e faço agora a minha própria objeção: a comunitariedade não é da ordem do dever-ser, é da ordem do ser. Na realidade é o agir comunitário que podemos classificar como sendo da ordem do dever-ser (e não a comunitariedade em si), o que nos coloca defronte de uma característica própria do ser humano, ele é o único ser vivo que pode agir em desconformidade com a sua própria natureza – não digo agir sem a natureza, mas desafiar a própria natureza.
Efetivamente, para existir como pessoa o ser humano precisa compartilhar elementos básicos com os outros. Por mais que dois interlocutores discordem sobre um assunto debatido, eles precisam estar de acordo com o significado de uma série de simbologias que está por trás do sistema lingüístico em que eles travam o diálogo. Além disto, é preciso ter também em comum uma visão básica sobre a realidade, como a certeza mútua de que há diante de si um interlocutor. Normalmente compartilhamos uma visão de mundo que está por trás das nossas análises sobre o próprio mundo, e é esta mesma visão de mundo compartilhada que permite as discordâncias sobre as várias análises. Ou seja, independente do conteúdo compartilhado, compartilhar é sempre algo fundamental à existência humana, e com isso, a vida comunitária também deve ser compreendida como fundamental, pois nós não compartilhamos algo conosco mesmos, mas com um outro. No entanto, o ser humano pode se distanciar desta condição e usar a sua necessária comunitariedade para viver como se a vida comunitária não fosse completamente essencial. É a isto que me referia quando dizia que o homem pode desafiar sua natureza ou essência.
Em condições normais, nunca veremos um leão vegetariano, nem este mesmo leão acordando antes de satisfazer o sono completamente para se preparar melhor para a caça. Neste caso vemos as características próprias deste animal se imporem determinando as sua ações2 . O homem pode, no decorrer de sua vida, escolher (movido por princípios livremente escolhidos) não comer mais carne. Pode escolher dormir bem menos durante o dia para realizar tarefas que ele considera fundamentais, ou criar sistemas de organização sócio-econômicos que obriguem um espaço de tempo destinado ao sono bem limitado, mesmo que a sua necessidade de sono permaneça inalterada diante desta motivação. Isto é possível porque a consciência e a liberdade permitem ao homem driblar algumas de suas determinações naturais.
Se pensarmos numa espécie de abelha própria de vida em colméias e que foi retirada da sua colméia e por algum motivo não consegue mais retornar, ficando completamente isolada de outras abelhas; não teremos dificuldade em prever seu futuro próximo: a morte. Apesar de anatomicamente ela ainda ser capaz de produzir favos e mel ela não irá construir seu próprio ninho e seu próprio mel para passar o restante de seus dias. Isto acontece porque ela está presa a um aspecto fundamental de sua essência: a sociabilidade. Na natureza, em geral todo animal fundamentalmente social terá profunda dificuldade – ou mesmo completa impossibilidade – de sobreviver se não estiver em seu ambiente social próprio. Mas no caso do homem acontece diferente. Sua racionalidade e liberdade lhe permitem usufruir de seu contexto social usando-o a seu favor – muitas vezes sem dar uma contrapartida proporcional – e viver como se não se precisasse dos outros, imersos num individualismo pretensamente natural, mas que não passa de um individualismo parasitário.
Sobre o pretenso egoísmo natural do ser humano
Normalmente se fala que o “egoísmo” natural de qualquer criança nos seus primeiros meses e anos de vida seja uma prova cabal de que a verdadeira natureza humana é individualista. No entanto, é interessante constatar que a fase em que somos mais egoístas coincida com a fase em que somos mais dependentes dos outros. Uma fase em que se percebe muito claramente como a idéia de um indivíduo atomizado, isolado e independente é frágil e se fosse aplicada a este momento da vida humana (supostamente ícone do egoísmo e do individualismo natural do homem) implicaria sua morte inevitável.
No homem há uma conjugação de uma natureza individual e social, que podemos chamar de dimensões pessoal e comunitária. Uma não exclui a outra e na verdade só há humanidade plena na manifestação interdependente destas duas dimensões. A confusão sobre a relação ente estas dimensões acontece por uma característica da dimensão comunitária: ela não é tão evidente quanto à compreensão que o homem tem de sua própria singularidade.
Na realidade nem podemos falar de percepção da individualidade completamente e naturalmente evidente. Esta percepção é posterior à percepção do outro. Como dizia Mounier, é no espelho do outro que a criança se reconhece distinta deste outro de modo que a percepção do “eu” é ao menos simultânea ao surgimento do “nós”. Mas apesar de ser constituída posteriormente ao encontro, a singularidade tende naturalmente a se tornar cada vez mais consciente e mais vívida.
As percepções que apontam para a individualidade são mais numerosas, pois o que nós temos de mais próximos a nós somos nós mesmos, por isso, também, são percepções mais diretas: a fome que eu sinto é sempre primeiramente a minha fome, do mesmo modo se sucede com a dor, a sede, e assim por diante. Chegamos a ser capazes de entender estas situações nos outros porque antes já passamos por elas e agora temos a capacidade de nos ver na situação alheia, de tal modo, a situação do outro adquire sentido para nós e nós podemos reconhecer neles estas circunstâncias. Ou seja, o nosso entendimento sobre o outro é posterior e indireto (mediado pelo eu)3 . Mas aí é que mora perigo, pelo fato de serem experiências mais diretas e por isso mais numerosas, e também mais impactantes (especialmente quando se tornam conscientes), estas percepções da singularidade não são suficientes para provar que a natureza do homem é individualista. Se é verdade que, alcançado o nível da consciência, o nós é mediado pelo eu, originalmente, quando ainda não há consciência manifesta é o eu que é mediado pelo nós (levando em conta a formação da personalidade humana4). O problema é que ter consciência do nós é muito mais complexo do que ter consciência do eu, a singularidade é muito mais evidente do que a sociabilidade. Daí a aparente evidência do primado no eu sobre o nós quando estamos nos momentos iniciais de uma reflexão sobre a sociabilidade humana; às vezes parece tão evidente, que tomamos este início por fim.
No entanto, ainda que a percepção do eu seja mais evidente que a percepção do nós isto não é suficiente para determinar o grau de destaque que o indivíduo irá receber na diversas sociedades. O atual reinado do indivíduo é apenas uma manifestação histórica no meio de muitas outras ocorridas e possíveis. Uma determinada visão de mundo, que podemos chamar de horizonte, é que define os destinos da relação entre indivíduo e sociedade.
Durkheim faz uma distinção interessante a respeito da relação entre os indivíduos e a sociedade no desenrolar da história. Ele fala de dois tipos fundamentais de solidariedade: a mecânica e a orgânica 5. As duas geram organizações sociais bem distintas. A solidariedade mecânica tem como predomínio a semelhança. Os indivíduos não são diferenciados e se organizam a partir de costumes e valores comuns. Há como que uma consciência coletiva, que perpassa as consciências individuais, mas que tem uma espécie de vida própria. Já a solidariedade orgânica é posterior e é marcada pela diferenciação social. Destacam-se as diferenças entre os indivíduos e a unidade do grupo tem menos prioridade em relação às preferências individuais. Segundo Durkheim, ela nasce a partir da divisão social do trabalho.
A ênfase atual no individualismo não é, pois, mais que um fruto de uma visão de mundo que se sobrepôs a outra. O mesmo poderia ser dito se a ênfase atual fosse da colaboração mútua entre as pessoas. Segundo Durkheim, a necessidade de formar laços comunitários e de compartilhar valores comuns foi inicialmente predominante nas comunidades humanas. Só depois o processo de diferenciação aconteceu. Não é, em última instância esta ênfase que retrata a natureza humana, pois dependendo das circunstancias ela pode até ir contra a natureza humana (para mim é exatamente isto que hoje acontece). A questão aqui é mais profunda, é preciso pensar sobre o modo próprio do homem existir no mundo (é a isto que me referi ao falar no início do texto sobre a necessidade fundamental do compartilhar para se falar de uma vida plenamente humana), e como as dimensões da singularidade e da sociabilidade se manifestam neste existir.
O outro lado da moeda
Chegando a este ponto é preciso um esclarecimento a fim de evitar um engano que pode surgir de uma apreciação apressada sobre nossa fala até o momento. A exaltação que fiz da sociabilidade não é feita para negar o valor da singularidade humana. O que eu quis dizer é que a sociabilidade é uma condição fundamental da existência plenamente humana, mas a singularidade também o é. Como já acenei no presente artigo: “uma não exclui a outra e na verdade só há humanidade plena na manifestação interdependente destas duas dimensões”. Kierkegaard já destacava o valor do singular6 frente à tentativa de universalização do conceito. Esta valorização não pode ser esquecida, mas isto não precisa ser feito a partir da desvalorização da sociabilidade. O grande dilema sobre a conciliação do singular e do coletivo pode ser pensado a partir de outros termos. O contraponto da singularidade em questão seria a comunidade – e não a coletividade ou o público – onde o singular é reconhecido como tal, sob pena de não podermos falar de comunidade se assim não for.
O problema sobre a noção do singular é a referência que se está jogo quando se invoca este termo. Se antes o que se tinha em mente era a irrepetibilidade (a especificidade de cada ser humano), a partir da modernidade passou-se a ter em mente prioritariamente um ser independente e isolado7. Com tais referências, o singular ganha uma capa de insociabilidade que originalmente não possuía. Em nosso tempo convém despir o termo destes acréscimos para pensá-lo em consonância com a sociabilidade.
______
(1) Mestre em filosofia, professor de Filosofia na Faculdade Católica Rainha do Sertão e Faculdade Católica do Cariri, no Estado de Ceará.
(2) A evolução biológica poderia ser compreendida como uma forma ir além deste determinismo, mas neste caso estamos muito mais diante de eventos frutos de um acaso (mutações) ou de uma ação da natureza sobre ela mesma (a seleção natural) do que de uma “escolha” particular que contraria as regras impostas. Além do mais, uma evolução se repassa às descendências e dura milhões de gerações para se efetivar ou se aperfeiçoar. No caso homem vemos este ato desafiador se concretizar várias vezes ou mesmo continuamente no espaço de uma vida em particular.
(3) Antes, quando não estávamos ainda no nível do entendimento, o eu era mediado pelo outro, agora, alcançado o nível da consciência, o caminho se inverte.
(4) A formação de uma consciência do nós é mediada pela formação do eu, mas a formação do eu é mediado pela experiência do nós.
(5) ARON, Raymond. Etapas do pensamento sociológico, p. 287.
(6)"Nos gêneros animais sempre vale o princípio de que 'o indivíduo é inferior ao gênero'. O gênero humano, em que cada indivíduo é criado â imagem de Deus, tem essa característica, de o singular ser superior ao gênero" (Diálogos, X2, A, -126).
(7) VINUESA, José Maria. El Concepto de Autopropiedad. Revista Acontecimiento, p. 16.
Imagem: Antonio Glauton Varela.
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