OS OUTROS PODEM SER PARAÍSO
A
vida humana se constrói com uma diversidade de experiências, positivas e
negativas. Essas experiências, por sua vez,
são substratos de nossa pessoalidade -, somos o que somos porque
passamos por tais experiências, e, por outro lado, não experenciando-as, seríamos
pessoas diferentes, com outro caráter e outra perspectiva, pelo fato de
estarmos envolvidos em outra circunstância, ou seja, em outras experiências.
São nossas experiências que, geralmente, se fazem, interpretes da realidade.
Através delas julgamos o mundo -, fazemos das nossas experiências lentes
definidoras do bem ou mal, do bom ou ruim, do certo ou errado, do ético e
antiético.
A
dor vivenciada pelo ser humano, por sua impressão angustiante, tende a deixar
fortes sensações na pessoa por ela assaltada, mais fortes do que as sensações
agradáveis - pelo fato de que o que nos desagrada, instintivamente desejamos
repelir, e, consequentemente, agitamos nosso ser com o desejo de nos livrar desse
infortúnio. E o que queremos repelir exige esforço, e, por outro lado, sobre o
que aceitamos nenhum esforço fazemos, apenas aceitamos. Por isso as sensações
negativas, no ser humano, naturalmente se destacam mais do que a sensações positivas.
A
pessoa do outro, a exemplo de tudo o que existe, não escapa da análise
visualizada por essas lentes. A famosa frase "o inferno são os
outros" pronunciada pelo personagem Gaurcin, na peça teatral de Sarte, Huis clos, ilustra bem a antipatia que nutrimos contra a pessoa do outro, pelo
fato de ela ser, em muito, protagonista de
nossas inquietações e desconfortos. Por sua vez, o filósofo personalista, também francês, Emmanuel Mounier, ponderando sobre o
mesmo problema, acentuado pela filosofia existencialista sartreana, afirma:
"o mundo dos outros
não é um jardim de delícias. É uma provocação permanente à luta, à adaptação e
à superação. Reintroduz constantemente o risco e o sofrimento onde arribamos à
paz. Por isso, o instinto de autodefesa reage, recusando-o".[1] Porém, Mounier, apesar de constatar o
desconforto que nos provoca a pessoa do outro, não deixa de nos apresentar um
importante dado, a saber: a pessoa do outro nos incita a superação. Nos faz ir,
se aceitarmos o desafio de sua provação, para além de nós mesmos. Ou seja, nos
faz crescer.
Em
sua ênfase pela importância do confronto de teses na ciência, Karl Popper defendeu
que "Devemos aprender que a
autocrítica é a melhor crítica, mas a crítica dos outros é necessária. É quase
tão boa quanto a autocrítica".[2]
Embora ele falasse sobre o importante choque de teses científicas, o que leva a ciência à
novas descobertas, podemos nos apropriar, seguramente, dessa assertiva para o
campo relacional. A visão do outro pode ampliar nossa visão, e, é isso que nos
ensina Ortega y Gasset quando afirma que a verdade é uma perspectiva, e cada
pessoa é um ponto de vista, um prisma com sua particular perspectiva, que, como
tal, não pode se bastar em si para compreender a amplitude da realidade; necessita
do conhecimento de outros pontos de vistas, com suas particulares perspectivas, para entender um pouco mais o macro ambiente existencial.
Se
já está constatada, pela reflexão crítica, a importância do outro para o nosso
desenvolvimento pessoal, inclusive como auxílio em nossa busca por autoconhecimento, com o outro, visualizados
por essa lente crítica, começamos a sair do inferno - que não o outro -, mas, a
nossa indisposta visão sobre o não-eu, nos conduziu, pelo fato de essa visão, nos
fazer caminhar pelas sendas da intolerância - , que se faz, caminho do inferno
-. Portanto, o inferno não é o outro, muitas vezes o inferno é a minha
indisposição à abertura em favor da comunicação com o outro.
Apesar
de reconhecer que o outro não é o que se poderia considerar um jardim de
delícias, Mounier nos faz refletir, que o inferno que Sartre, com seu personagem
identifica na presença do outro, pode, efetivamente, ser percebido em nossa
recusa ao outro, em nosso isolamento, pois isolados nos alienamos e nos
tornamos desconectados, e, por consequência,
incompletos.
Assim como o filósofo que começa por se fechar
no pensamento nunca encontrará uma porta para o ser, assim também aquele que,
antes de mais, se fecha no eu nunca encontrará o caminho para outrem. Quando a
comunicação afrouxa ou se corrompe, perco-me a mim mesmo profundamente: todas
as loucuras são um fracasso da relação com outrem - alter torna-se alienus;
torno-me, por minha vez, estranho a mim próprio, alienado. Quase se poderia
dizer que só existo na medida em que existo para outrem e, no limite, ser é
amar. (MOUNIER, 2010, p.40).
Se
a pessoa do outro me leva à necessárias transformações, se me faz evoluir,
crescer, se ela ajuda em minha busca por autocompreensão, ou seja, me
completa -, distanciando-se da ideia de inferno -, pode se aproximar, em significativa
compreensão, a ideia de paraíso. Pois se a palavra inferno, se origina da mesma
raiz do termo inferior, aquilo que está abaixo -, do latim INFERUS, “o que está abaixo”, de INFRA, “abaixo, sob”[3]
-,completando-me, a pessoa do outro não pode ser considerada meu
inferno, pelo fato de ela ajudar-me a transcender, a sair de mim mesmo, a
superar-me, elevar-me - levando-me mais ao caminho da plenitude (paraíso) do
que o da alienação pessoal (inferno). O termo Paraíso, termo
oriundo do Avéstico pairidaeza, “parque, jardim cercado”, transliterado para o Grego como paradeisos,[4]
“jardim cercado, seria um espaço preparado com cuidado, com certo
capricho. Diferentemente de um mero espaço natural, o paraíso era criado com um
propósito. Na cultura cristã, o paraíso é o lugar onde o ser alcançará a
plenitude, preparado para se fazer o encontro do
ser consigo mesmo, em comunhão com o outro e com Deus -, segundo o pensamento
cristão -, vivência que havia sido, originalmente, proposta ao homem. Portanto, se a pessoa do outro nos encaminha
mais para a transcendência, através da possibilidade de vivenciarmos a riqueza
da comunhão, que é o paraíso do ser, sua presença é um fator positivo e necessário, e, portanto, está mais
para paraíso do que para inferno.
Todas as nossas conquistas e infortúnios requerem a percepção do outro. Nos
arrumamos pensando no olhar do outro, quando conquistamos desejamos o aplauso do
outro, sofrendo suplicamos o auxílio do outro, nos perfumamos evocando o
olfato do outro, etc. Poucas sãos as vivencias humanas que não desejam a
percepção ou o olhar do outro. Nosso ser implora pelo outro. Lemos a obra do
outro -, que, por sua vez, desejou o nosso olhar -, querendo compartilhar com outros outros o
prazer da leitura. Nunca nos bastamos em nós mesmos -, os outros nos completam
-. A continuidade de nosso sorriso, de nossas gargalhadas, da alegria da posse,
do prazer de nossas conquistas dependem da continuidade da presença do outro.
Nesse sentido o outro é o meu paraíso. Os lares, as igrejas, os bares, escolas e
as diversas instituições humanas testemunham o convívio humano do eu com o
outro, em muitos, casos como opção, não como imposição. A opção pelo convívio
com outro pode significar que esse outro que às vezes pode se fazer inferno,
intensamente se faz paraíso, se faz aprazível, e por isso optamos pela
continuidade do convívio.
O outro muitas vezes é aviltado pelo fato de que na caminhada
existencial muitos encontros se fazem desencontros, e esses desencontros,
vivenciados sob várias formas, nos decepcionam de tal maneira que preferimos
diminuir a qualidade existente em nosso próximo do que reconhecer seu real valor, sua importância e dignidade. Erramos, muitas vezes, ao reluzi-lo aos conceitos
negativos de nossa visão preconceituosa, borrada por nossos duros valores
morais e culturais. Erramos, quando esquecemos de perceber que para o outro eu
sou outro, e que, minha presença, se fazendo intolerante, pode reforçar, ainda
mais, a ideia de que o outro é sempre o inferno do eu.
Segundo Ortega y Gasset: civilização é, antes de tudo, vontade de convivência.
Somos incivis e bárbaros na medida em que não contamos com o demais.[5]
O pensamento de Ortega y Gasset, nos leva a ponderar no fato de que sem o
outro, estagnamos em nossa aspereza e que a relação com o outro é fundamental para a saúde da sociedade em que estamos inseridos. Perceber a relevância da
presença do outro com a sua peculiar forma de ser, pode ser o caminho para a aceitação
amorosa e a consequente valorização de outras pessoalidades, e o caminho para a
satisfação de existir, pelo fato de viver, implicar em, com o outro, conviver.
Lailson Castanha
[1] MOUNIER, Emmanuel. O personalismo; tradução Artur Mourão.
1ed. Lisboa: Texto & Grafia, 2010. p. 37,38.
[2] POPPER, Karl. O mundo de Parmênides: ensaios sobre o
iluminismo pré-socrático; tradução Roberto Leal Ferreira. 1ed. São Paulo:
Editora Unesp, 2014. p. 73.
[3] http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/inferior/
[4] http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/paraiso/
[5] ORTEGA
Y GASSET, José. A rebelião das massas; tradução Marylene Pinto Rafael. 3 ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2007. p 108.