Emmanuel Mounier (1905-1950) e sua filha Anne

Espaço para difusão da filosofia personalista de Emmanuel Mounier e para ponderações de vários temas importantes, tendo como referência essa perspectiva filosófica.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Os outros podem ser paraíso

OS OUTROS PODEM SER PARAÍSO

A vida humana se constrói com uma diversidade de experiências, positivas e negativas. Essas experiências, por sua vez,  são substratos de nossa pessoalidade -, somos o que somos porque passamos por tais experiências, e, por outro lado, não experenciando-as, seríamos pessoas diferentes, com outro caráter e outra perspectiva, pelo fato de estarmos envolvidos em outra circunstância, ou seja, em outras experiências. São nossas experiências que, geralmente, se fazem, interpretes da realidade. Através delas julgamos o mundo -, fazemos das nossas experiências lentes definidoras do bem ou mal, do bom ou ruim, do certo ou errado, do ético e antiético.
A dor vivenciada pelo ser humano, por sua impressão angustiante, tende a deixar fortes sensações na pessoa por ela assaltada, mais fortes do que as sensações agradáveis - pelo fato de que o que nos desagrada, instintivamente desejamos repelir, e, consequentemente, agitamos nosso ser com o desejo de nos livrar desse infortúnio. E o que queremos repelir exige esforço, e, por outro lado, sobre o que aceitamos nenhum esforço fazemos, apenas aceitamos. Por isso as sensações negativas, no ser humano, naturalmente se destacam mais  do que a sensações positivas.
A pessoa do outro, a exemplo de tudo o que existe, não escapa da análise visualizada por essas lentes. A famosa frase "o inferno são os outros" pronunciada pelo personagem Gaurcin, na peça teatral de Sarte, Huis clos, ilustra bem a antipatia que nutrimos contra a pessoa do outro, pelo fato de ela ser, em muito,  protagonista de nossas inquietações e desconfortos. Por sua vez, o filósofo personalista, também  francês, Emmanuel Mounier, ponderando sobre o mesmo problema, acentuado pela filosofia existencialista sartreana, afirma: "o mundo dos outros não é um jardim de delícias. É uma provocação permanente à luta, à adaptação e à superação. Reintroduz constantemente o risco e o sofrimento onde arribamos à paz. Por isso, o instinto de autodefesa reage, recusando-o".[1]   Porém, Mounier, apesar de constatar o desconforto que nos provoca a pessoa do outro, não deixa de nos apresentar um importante dado, a saber: a pessoa do outro nos incita a superação. Nos faz ir, se aceitarmos o desafio de sua provação, para além de nós mesmos. Ou seja, nos faz crescer.
Em sua ênfase pela importância do confronto de teses na ciência, Karl Popper defendeu que "Devemos aprender que a autocrítica é a melhor crítica, mas a crítica dos outros é necessária. É quase tão boa quanto a autocrítica".[2] Embora ele falasse sobre o importante choque de teses científicas, o que leva a ciência à novas descobertas, podemos nos apropriar, seguramente, dessa assertiva para o campo relacional. A visão do outro pode ampliar nossa visão, e, é isso que nos ensina Ortega y Gasset quando afirma que a verdade é uma perspectiva, e cada pessoa é um ponto de vista, um prisma com sua particular perspectiva, que, como tal, não pode se bastar em si para compreender a amplitude da realidade; necessita do conhecimento de outros pontos de vistas, com suas particulares perspectivas, para entender um pouco mais o macro ambiente existencial.  
Se já está constatada, pela reflexão crítica, a importância do outro para o nosso desenvolvimento pessoal, inclusive como auxílio em nossa busca por  autoconhecimento, com o outro, visualizados por essa lente crítica, começamos a sair do inferno - que não o outro -, mas, a nossa indisposta visão sobre o não-eu, nos conduziu, pelo fato de essa visão, nos fazer caminhar pelas sendas da intolerância - , que se faz, caminho do inferno -. Portanto, o inferno não é o outro, muitas vezes o inferno é a minha indisposição à abertura em favor da comunicação com o outro.   
Apesar de reconhecer que o outro não é o que se poderia considerar um jardim de delícias, Mounier nos faz refletir, que o inferno que Sartre, com seu personagem identifica na presença do outro, pode, efetivamente, ser percebido em nossa recusa ao outro, em nosso isolamento, pois isolados nos alienamos e nos tornamos desconectados, e,  por consequência, incompletos.

Assim como o filósofo que começa por se fechar no pensamento nunca encontrará uma porta para o ser, assim também aquele que, antes de mais, se fecha no eu nunca encontrará o caminho para outrem. Quando a comunicação afrouxa ou se corrompe, perco-me a mim mesmo profundamente: todas as loucuras são um fracasso da relação com outrem - alter torna-se alienus; torno-me, por minha vez, estranho a mim próprio, alienado. Quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para outrem e, no limite, ser é amar. (MOUNIER, 2010, p.40).

Se a pessoa do outro me leva à necessárias transformações, se me faz evoluir, crescer, se ela ajuda em minha busca por autocompreensão, ou seja, me completa -, distanciando-se da ideia de inferno -, pode se aproximar, em significativa compreensão, a ideia de paraíso. Pois se a palavra inferno, se origina da mesma raiz do termo inferior, aquilo que está abaixo -, do latim INFERUS, “o que está abaixo”, de INFRA, “abaixo, sob”[3] -,completando-me, a pessoa do outro não pode ser considerada meu inferno, pelo fato de ela ajudar-me a transcender, a sair de mim mesmo, a superar-me, elevar-me - levando-me mais ao caminho da plenitude (paraíso) do que o da alienação pessoal (inferno). O termo Paraíso, termo oriundo do Avéstico pairidaeza, “parque, jardim cercado”, transliterado para o Grego como paradeisos,[4] “jardim cercado, seria um espaço preparado com cuidado, com certo capricho. Diferentemente de um mero espaço natural, o paraíso era criado com um propósito. Na cultura cristã, o paraíso é o lugar onde o ser alcançará a plenitude,  preparado para se fazer o encontro do ser consigo mesmo, em comunhão com o outro e com Deus -, segundo o pensamento cristão -, vivência que havia sido, originalmente, proposta ao homem.  Portanto, se a pessoa do outro nos encaminha mais para a transcendência, através da possibilidade de vivenciarmos a riqueza da comunhão, que é o paraíso do ser, sua presença é um fator  positivo e necessário, e, portanto, está mais para paraíso do que para inferno.
Todas as nossas conquistas e infortúnios requerem a percepção do outro. Nos arrumamos pensando no olhar do outro, quando conquistamos desejamos o aplauso do outro, sofrendo suplicamos o auxílio do outro, nos perfumamos evocando o olfato do outro, etc. Poucas sãos as vivencias humanas que não desejam a percepção ou o olhar do outro. Nosso ser implora pelo outro. Lemos a obra do outro -, que, por sua vez, desejou o nosso olhar -,  querendo compartilhar com outros outros o prazer da leitura. Nunca nos bastamos em nós mesmos -, os outros nos completam -. A continuidade de nosso sorriso, de nossas gargalhadas, da alegria da posse, do prazer de nossas conquistas dependem da continuidade da presença do outro. Nesse sentido o outro é o meu paraíso. Os lares, as igrejas, os bares, escolas e as diversas instituições humanas testemunham o convívio humano do eu com o outro, em muitos, casos como opção, não como imposição. A opção pelo convívio com outro pode significar que esse outro que às vezes pode se fazer inferno, intensamente se faz paraíso, se faz aprazível, e por isso optamos pela continuidade do convívio.  
O outro muitas vezes é aviltado pelo fato de que na caminhada existencial muitos encontros se fazem desencontros, e esses desencontros, vivenciados sob várias formas, nos decepcionam de tal maneira que preferimos diminuir a qualidade existente em nosso próximo do que reconhecer seu real valor, sua importância e dignidade. Erramos, muitas vezes, ao reluzi-lo aos conceitos negativos de nossa visão preconceituosa, borrada por nossos duros valores morais e culturais. Erramos, quando esquecemos de perceber que para o outro eu sou outro, e que, minha presença, se fazendo intolerante, pode reforçar, ainda mais, a ideia de que o outro é sempre o inferno do eu.  
Segundo Ortega y Gasset: civilização é, antes de tudo, vontade de convivência. Somos incivis e bárbaros na medida em que não contamos com o demais.[5] O pensamento de Ortega y Gasset, nos leva a ponderar no fato de que sem o outro, estagnamos em nossa aspereza e que a relação com o outro é fundamental para a saúde da sociedade em que estamos inseridos. Perceber a relevância da presença do outro com a sua peculiar forma de ser, pode ser o caminho para a aceitação amorosa e a consequente valorização de outras pessoalidades, e o caminho para a satisfação de existir, pelo fato de viver, implicar em, com o outro, conviver.

Lailson Castanha




[1] MOUNIER, Emmanuel. O personalismo; tradução Artur Mourão. 1ed. Lisboa: Texto & Grafia, 2010. p. 37,38.
[2] POPPER, Karl. O mundo de Parmênides: ensaios sobre o iluminismo pré-socrático; tradução Roberto Leal Ferreira. 1ed. São Paulo: Editora Unesp, 2014. p. 73.
[3] http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/inferior/
[4] http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/paraiso/
[5] ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas; tradução Marylene Pinto Rafael. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p 108.   

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Intentamos propagar o personalismo, bem como suas principais ideias e seus principais pensadores, com a finalidade de incitar o visitante desse espaço a ponderar de forma efetiva sobre os assuntos aqui destacados e se aprofundar na pesquisa sobre essa inspiração filosófica, tão bem encarnada nas obras e nos atos do filósofo francês, Emmanuel Mounier.

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